René Descartes Ciência e Filosofia Destaque
René Descartes © NetMundi

Ciência e Filosofia

Estamos em pleno século XVII, em França, mais precisamente no ano 1641. Conforme longa narrativa sobre a construção da mentalidade ocidental exposta no artigo Ateísmo Cultural, houve um período de transição conhecido popularmente como Renascimento entre os séculos XIV e XVI, onde a ideia de uma nova ciência que nos daria domínio da natureza e a promessa de novas tecnologias se sobrepôs à busca da sabedoria e da virtude pelos helênicos e ao direcionamento do homem ao seu destino posterior a esta vida dos medievais.

Com a publicação da obra Meditações sobre Filosofia Primeira, Renê Descartes consolida a ideia de uma nova cosmovisão advinda de um universo mecânico já descrito por Nicolau Copérnico (1473-1543) e Galileu (1564-1642). Nesta nova maneira de perceber o mundo, a natureza profunda das coisas simplesmente não era mais do interesse dos intelectuais da Academia, tudo o que lhes interessava era a organização matematizada das aparências, de modo a poder manipulá-las tecnologicamente, produzindo efeitos repetíveis e desejáveis.

O universo cartesiano é, então, um universo mecânico, constituído de res extensa (matéria) a mover-se no espaço de acordo com leis mecânicas. Todo o resto fica relegado a res cogitans ou substância pensante, que existe por si só como uma espécie de entidade espiritual na mente de cada ser humano.

Nesse contexto, foram excluídas da observação científica as qualidades que só podem ser conhecidas por intermédio de sensações subjetivas, variáveis de individuo para indivíduo: a cor, o gosto, o cheiro, o som. Ficaram somente aquelas que supostamente residem nas coisas mesmas e podem ser determinadas com certeza por todos os seres humanos unanimemente: a figura, a extensão, o movimento e o número. Estas são as qualidades primárias que definem a realidade física. Aquelas, as secundárias, só existiriam para a psique individual que as apreende.

Devemos reconhecer que essa dicotomia tem sua função, já que, ao relegar as chamadas qualidades secundárias ao segundo dos compartimentos cartesianos (res cogitans), consegue-se de um golpe só uma simplificação incalculável da primeira (res extensa). O que sobra, de fato, é precisamente o tipo de mundo externo que a física matemática poderia em princípio compreender “sem resíduo”.

Há, no entanto, um preço a ser pago: uma vez que o real tenha sido dividido em dois, fica difícil alguém saber como colar os pedaços de volta. Como é possível, por exemplo, que a res cogitans tome consciência da res extensa? Através da percepção, sem dúvida, mas, então, o que é que nós percebemos? Ora, em tempos pré-cartesianos, pensava-se – sendo filósofo ou não – que, no ato da percepção visual, nós de fato “lançamos o olhar” ao mundo exterior. Nada disso, declara René Descartes; se o que eu realmente percebo é, digamos, um objeto vermelho, então ele deve pertencer à res cogitans, pela simples razão que a res extensa não apresenta nenhuma cor (qualidade). Assim, raciocinando de acordo com a suposição inicial, não é por gosto, mas por força de necessidade lógica que Descartes foi levado a postular o que desde então ficou conhecido como “bifurcação”, a saber, a tese de que os objetos de percepção pertencem exclusivamente à res cogitans ou ainda, de que o que realmente percebemos é privado e subjetivo. *

Em crassa oposição à crença comum, o cartesianismo insiste em que nós não “lançamos o olhar” para o mundo exterior; de acordo com esta filosofia, nós estamos na verdade engaiolados, cada um em seu mundo particular, e o que normalmente tomamos como sendo parte do universo exterior na verdade não passa de um objeto mental, como um sonho, cuja existência não se estende para além do ato perceptivo.

Mas esta posição é, para dizer o mínimo, precária; já que, se o ato de percepção não atravessa de fato o fosso entre o mundo de dentro e o de fora – entre a res cogitans e a res extensa -, como então é preenchida essa lacuna? Precisamos, para este fim, recapitular a História.

Quando Tales de Mileto inaugurou a Escola Jônica em aproximadamente 600 a.C. não existia distinção clara entre ciência e filosofia. Os filósofos da natureza buscavam respostas racionais para os fenômenos da natureza e as razões da existência, levando para o mundo grego os conhecimentos adquiridos das civilizações egípcia e mesopotâmica. Entre os séculos VII e V a.C., diversos pensadores foram responsáveis pela transição da consciência mítica para a consciência filosófica. Várias foram essas correntes de pensamento:

a) Escola Jônica: desenvolvida na colônia grega Jônia, na Ásia Menor (atual Turquia), seus principais representantes são: Tales de Mileto, Anaxímenes de Mileto, Anaximandro de Mileto e Heráclito de Éfeso;

b) Escola Pitagórica: também chamada de “Escola Itálica”, foi desenvolvida no sul da Itália, e recebe esse nome visto que seu principal representante foi Pitágoras de Samos;

c) Escola Eleática: desenvolvida no sul da Itália, sendo seus principais representantes: Xenófanes de Cólofon, Parmênides de Eléia e Zenão de Eléia;

d) Escola Atomista: também chamada de Atomismo, foi desenvolvida na região da Trácia, sendo seus principais representantes: Demócrito de Abdera e Leucipo de Abdera.

A filosofia naturalista perde seu apogeu com a mudança social e política grega, radicalizada principalmente no período da Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.). Com a intensificação da vida pública, as atenções dos filósofos passaram a se relacionar com a política e a atividade humana.

Pouco a pouco, num processo que vai do século IV a. C. ao começo da idade moderna (Renascimento), os vários domínios do conhecimento se articulavam em sistemas, os conceitos se cristalizavam em fórmulas repetíveis, os métodos se estabilizavam em rotinas lógicas e dialéticas e se consagravam em programas de ensino universitário. A filosofia, tal como aparece em Sócrates, Platão e Aristóteles, caracterizou-se por ingressar nos problemas que investigava sem trazer nenhum método pronto, nenhum conceito previamente estabelecido, e aliás nem mesmo perguntas padronizadas. Ela entrava em campo, literalmente, desarmada. Começava com o espanto ante a realidade da experiência, e apelando a todos os recursos cognitivos que podia encontrar – a memória, a imaginação, o raciocínio lógico, a confrontação dialética, as opiniões correntes, os relatos dos viajantes, os preceitos dos médicos, os mitos e poemas, até mesmo as artimanhas retóricas dos sofistas -, buscava laboriosamente descobrir quais as perguntas mais viáveis, os conceitos descritivos mais apropriados, os métodos mais produtivos e, por fim, os princípios básicos desde os quais as perguntas, uma vez depuradas e formalizadas, pudessem ser respondidas com relativa segurança.

Voltando ao século XVII, precisamos de algumas considerações sobre o universo físico. Vimos inicialmente que o mundo corpóreo existe para nós como o domínio das coisas a serem conhecidas através da percepção sensitiva e veremos agora que o universo físico existe para nós num sentido muito parecido. Ocorre apenas que os respectivos meios de conhecimento são nitidamente distintos. No primeiro caso, conhecemos através da percepção direta e no segundo através de um modus operandi baseado na medição, o que é totalmente diferente.

Assim sendo, o físico “lança o olhar para a realidade” não com as faculdades humanas usuais da percepção, mas por meio de instrumentos artificiais, e o que ele enxerga com esses olhos artificiais é um estranho mundo novo que consiste de quantidades e de estrutura matemática. Em suma, ele toma conhecimento do universo físico e não do familiar mundo corpóreo. O que deve ser feito, portanto, dessa curiosa dualidade? Podemos dizer, talvez, que um desses domínios seja real e o outro subjetivo ou talvez fictício? Certamente não existem razões convincentes que amparem nenhum desses reducionismos. O que se vê depende das “lentes” pelas quais você olha, essa é a essência da questão.

Então temos que o universo físico “se mostra à vista” por meio da medição, mas deve-se acrescentar imediatamente que somente a medição não basta. Forçosamente existe também um aspecto teorético nesse processo cognitivo, o que significa dizer que nada pertencente ao objeto físico pode ser conhecido sem uma teoria, sem um modelo apropriado. As facetas experimental e teorética da disciplina andam lado a lado, existindo entre as duas uma maravilhosa simbiose – talvez delicada demais para ser descrita adequadamente em manuais. Basta dizer que experimento e teoria combinam-se num único empreendimento cognitivo, num mesmo modo de conhecimento.

Que acontece, em substância, quando uma ciência “se separa” da filosofia? Em que consiste, no mundo real e não na esfera dos puros conceitos, essa proclamação de independência? A questão é que uma coisa é saber e outra bem diferente é saber o como se sabe. Descartes enxergava no pensamento lógico matemático a modalidade suprema da inteligência humana, a quintessência da res cogitans. Ora, as qualidades ditas primárias eram precisamente aquelas que só a inteligência matemática, e não os sentidos deixados a si mesmos, podia apreender nos objetos mediante medições e comparações. A própria palavra “mensuração” traía sua origem do latim mens, “a mente”. Daí resultaria, inexoravelmente, que os termos da nova equação metodológica estavam invertidos; tudo aquilo que nos objetos era mais caracteristicamente mental, ou racional, era chamado de “matéria” ou “corpo”, ao passo que o verdadeiramente corporal, que não podia ser conhecido pelo puro pensamento e só chegava a nós pelo impacto dos cinco sentidos, vinha rotulado como “mental”. O livro em que Descartes expõe a sua concepção de natureza é, nada mais, nada menos, que um “mundo às avessas!

A solução encontrada para essa dificuldade foi um arranjo brilhante, mas fundamentalmente irresponsável e desastroso, uma verdadeira negociata intelectual. Quem melhor a formulou em palavras foi Immanuel Kant, mas ela já estava espalhada nas obras de Hobbes, Hume e implícita na parte científica pelo menos desde Galileu. Podemos denominar essa gambiarra de metodocracia, ou a concepção de uma nova regra científica: não é o objeto que determina o método, mas o método determina o objeto.

Conforme exposto por Olavo de Carvalho na magnífica obra A Filosofia e seu Inverso: o campo de uma ciência não corresponderia mais a um conjunto de seres, coisas ou fatos objetivamente distintos, separados dos outros por fronteiras reais; mas simplesmente ao conjunto dos temas que se revelem mais dóceis aos métodos dessa ciência, quaisquer que sejam estes e pouco importando de onde tenham surgido. Assim, por exemplo, a psicologia moderna pode prosseguir imperturbavelmente seu trabalho sem ter a menor ideia do que seja a “psique” e sem saber ao menos se ela existe. A diversidade de opiniões nesse tópico abre-se num leque que vai de Carl Jung, para o qual tudo no mundo é psique, até B.F. Skinner, segundo o qual não existe psique nenhuma e tudo o que chamamos por esse nome são aparências enganosas de certos mecanismos neurológicos. Qual é então o objeto da psicologia? Não há outra maneira de defini-lo senão como “qualquer coisa que os psicólogos estudem”. Não é preciso dizer que esse estado de coisas é praticamente um convite à arbitrariedade e ao charlatanismo.

A psicologia, a antropologia, ou a sociologia – para não falar da ciência política – parecem conviver muito bem com essas dificuldades sem sentir grande necessidade de resolvê-las ou mesmo de discuti-las. É justamente nas ciências mais desenvolvidas que esses e outros handicaps se fazem sentir com mais estridência. O exemplo supremo é a física, a maior colecionadora de glórias e vitórias do método experimental. Não é possível estudar nem um pouquinho da relatividade, ou da teoria quântica, sem esbarrar a cada minuto em perguntas cabeludas que o método experimental, por si, não tem como responder, e que forçam o cientista a mergulhar em questões filosóficas – às vezes pseudofilosóficas – no esforço de compreender o que está fazendo.

Bifurcação cartesiana e metodocracia são inconsistências crônicas da ciência moderna e sintomas gravíssimos do ambiente cultural que começou a ser construído no Renascimento para aumentar a conveniência e o poder do homem. Incapazes de dar conta do estatuto ontológico dos objetos que investigavam e cada vez mais desinteressados de fazê-lo, os praticantes do novo método acabaram por assumir a deficiência como uma qualidade positiva, declarando que a natureza profunda das coisas simplesmente não era da sua conta. Não é preciso enfatizar os poderosos interesses econômicos que deram respaldo à nova visão das coisas, estimulando por toda parte o descrédito da velha filosofia.

A compreensão filosófica deveria ser a causa final do esforço científico, que só nela se perfaz – ou deveria perfazer-se – como vitória efetiva do intelecto humano sobre a confusão das coisas. Se a conquista dessa compreensão não raro se mostra dificultosa e problemática, isso não justifica nem que a busca experimental fique parada à sua espera, nem que a etapa experimental seja elevada à condição de meta final e autônoma do processo cognitivo, como se a compreensão fosse apenas um adorno suplementar – ou uma ocupação exclusiva dos departamentos de “filosofia”, sem importância para os de “ciência”.

Então por que este artigo é iniciado no contexto de uma data histórica, 1641? Simplesmente para usar o momento da publicação de uma obra literária, no caso as Meditações Sobre Filosofia Primeira, como marco cultural ou simbólico da ruptura de uma “visão de mundo” ou cosmovisão que divide o mundo antigo do mundo moderno.

Leibniz (filósofo alemão 1642-1716) observou muito bem que Descartes tinha uma séria vocação de chefe de escola, de líder de uma corrente de pensamento. A ambição dele não era nada mais, nada menos do que substituir toda a escolástica, todo o aristotelismo, e modificar, inclusive, o ensino religioso, como de fato veio a acontecer: durante o século XVIII, praticamente todos os seminários franceses adotaram Descartes como pilar dos seus ensinamentos. Ele chegou a ser celebrado como o “descobridor” da “subjetividade”, quando, de fato, o que ele fez foi substituir à subjetividade profunda e genuína do “eu confessante” de Santo Agostinho a pseudo-subjetividade, periférica e artificial da mente construtiva.

Se compararmos as Confissões de Santo Agostinho com as Meditações, veremos que a diferença entre essas duas autobiografias espirituais reside em que, na primeira, as especulações filosóficas permanecem muito próximas à voz interna do pecador que confessa seus pecados, ao passo que, na segunda, o impulso construtivista da mente adquire vôo próprio e, assim, vai parar longe da consciência imediata e aliena-se fora da experiência concreta das relações humanas.

Pensadores subsequentes, como David Hume, Kant e Karl Marx, mostraram um estado de alienação ainda mais avançado, mas a rachadura entre a verdade da alma e a construção mental já se evidencia plenamente em René Descartes. O que vimos acontecer no Ocidente a partir do século XVI foi o surgimento de ideologias pseudofilosóficas que, travestidas artificialmente de “científicas”, expulsaram pouco a pouco da bibliografia acadêmica todo o sistema filosófico e científico que construíra a civilização europeia durante dois mil anos, sob o argumento falacioso que tudo aquilo havia sido “superado” pelo clima cultural que passou a moldar as percepções da nova sociedade inserida em um universo mecânico e material.

De fato, essa separação total de mundos entre a res extensa e res cogitans elaborada pelo matemático e filósofo francês moldou em grande parte a cosmovisão moderna. A subjetividade cartesiana foi a mãe do relativismo moral secular, assim como a dúvida cartesiana e seu método reflexivo foram fundamentais para a eclosão das diversas ideologias políticas revolucionárias que surgiram desde então.

O divórcio forçado entre ciência e filosofia enfim deixou um rastro de perda da capacidade cognitiva da humanidade imensurável e inimaginável há poucos séculos. A objetividade moral que guiou as altas civilizações por milênios foi completamente banida do meio acadêmico e só permanece atual na vida cotidiana e simples do homem comum. Os academicistas seculares sempre evocam a cartada da inquisição católica como paradigma dos crimes cometidos em nome das revoluções políticas modernas. Pois somente nos primeiros meses da revolução francesa matou-se mais que em quatro séculos da inquisição espanhola. Quanto aos horrores vivenciados no século XX…

Por fim, sem um rigoroso retorno às raízes de nossos problemas não haverá progresso tecnológico que dará conta da salvação de nossas almas.

Trecho retirado do livro “O Enigma Quântico” do Prof. Wolfgang Smith
* Foto: NetMundi

Autor

Alexandre Castanheira

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Respostas de 3

  1. É um artigo rico de conhecimento e idéias. Estamos mesmo precisando de uma nova visão da realidade, para que nosso mundo possa fluir numa mudança social e espiritual positiva.

  2. Resgate histórico riquíssimo e muito elucidativo! Fica mais fácil compreender de onde vem a quase ausência de questionamento daquilo que chamam hoje de ciência. Com a devida venia, quanta vigarice!

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