Sim, este artigo é fortemente inspirado na obra Freudiana, que em tradução literal do alemão poderia também ser intitulada “O desconforto na Cultura”. Considerando o esforço do autor em conceituar civilização como: “a soma das realizações e instituições que afastam a nossa vida daquela de nossos antepassados animais para a proteção do homem contra a natureza e a regulamentação dos vínculos dos homens entre si”, e cultura sendo “todas as atividades e valores que são úteis para o ser humano”; resta claro que há relação bastante intrínseca entre os dois conceitos.
Minha primeira leitura do referido livro ocorreu em algum momento da década passada, quando minhas maiores influências filosóficas eram Nietzsche e Zizek, ou niilismo e anarquia, como preferirem. A leitura provocou-me algum impacto, não extraordinário, mas o suficiente para deixar uma marca na memória afetiva. Dez ou quinze anos mais velho e profundamente interessado e impactado com as mudanças sociais e culturais que se impuseram nestes últimos anos, achei por bem e não por hábito, revisitar uma obra literária que me marcara outrora e poderia me ajudar na compreensão perturbadora de uma sociedade em elevado grau de desconforto espiritual. Afinal de contas, quando havia começado esse mal estar da vida moderna? O pai da psicanálise deveria me ajudar.
Não era meu objetivo com a revisita literária dimensionar a relevância do estudo da psicanálise para a humanidade, mas sim buscar um nexo temporal, talvez um fio condutor histórico que me guiasse para a origem desta angústia pós moderna que nos assola. Da vaga lembrança que tinha da retórica Freudiana a grande culpada já estava eleita, era a religião a causa deste desconforto; mas desta vez eu me exigiria uma melhor compreensão do livro como um todo, mais acuracidade nos argumentos do gênio cientista.
Eu não estava mais disposto a aceitar como fato consumado que o velho bode expiatório dos males do mundo (a religião) continuasse tão inconteste entre os produtores de cultura, afinal, já se vão quase dois séculos e meio das Revoluções Americana e Francesa que consolidaram os modelos de estado laico no Ocidente, e quatro séculos da Revolução Científica de Descartes e Hobbes que eliminou a metafísica teológica do debate acadêmico. Já não haveria produção científica e artística suficiente desde o advento do Humanismo Renascentista que nos tivesse feito superar a fraqueza do espírito cristão cultivado pelo homem medieval? Freud teria mais trabalho comigo agora.
Entrando de vez nos meandros da obra e superando a narrativa contextual introdutória, percebe-se que o autor faz uma linha de corte no estado civilizacional da humanidade na vitória do cristianismo sobre as religiões pagãs. Este advento estaria ligado à depreciação da vida terrena, efetuada pela doutrina cristã (a lembrança de Nietzsche se fez presente!).
Ocorre que, não distante na narrativa, deparo-me com a primeira grande contradição à tese defendida, quando Freud passa a tratar das atividades psíquicas mais elevadas: “Entre essas ideias se destacam os sistemas religiosos (…) e as especulações filosóficas (…)”, sendo mister reconhecer que a existência desses sistemas, em especial seu predomínio, indica um elevado grau de civilização. (grifos nossos)
Então ficamos assim, a religião era a solução original para conter os instintos naturais do homem, mas como veio a ser definitivamente uma solução errada, também acabou tornando-se um problema.
A partir daí minha inquietude transformou-se em inconformismo. Nada mais na sequência do livro pareceu-me sensato. Também impliquei com a escolha de São Francisco de Assis como paradigma intelectual da teologia católica. No caso de uma crítica científica sobre a metafísica cristã, Freud deveria ter mirado a obra mais influente sobre teologia já escrita, a Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino, praticamente contemporânea do frade franciscano. No fim, o meu reencontro com o pai da psicanálise havia se tornado um fracasso.
Todo este desencanto com a literatura de outrora acabou me levando, por consequência, a buscar novas fontes de conhecimento, novas formas de interpretação da nossa História. Meu desconsolo com o Mal Estar na Civilização precisava cumprir seu objetivo inicial, mesmo que por linhas tortas; se não restou tão comprovada assim a culpa da religião nesta angústia premente, quem sabe a falta dela poderia dizer alguma coisa. Se o abandono da tradição teológica na cultura havia se dado durante o Renascimento, seria lá o novo foco de estudos.
Fazia um bom tempo que o termo Idade das Trevas para designar os tempos medievais me aborrecia. Efetivamente, todo o esplendor artístico e depois científico que a civilização ocidental experimentou a partir do século XIV não poderia ter surgido do nada, muito menos das trevas. Já vivi tempo suficiente para saber que negar ou desprezar nossas origens não pode ser um bom caminho para qualquer indivíduo, tampouco para toda uma cultura que já se fizera, àquela época, milenar. Mas, não seria exatamente essa postura leniente que temos adotado perante nossa História, desde a Revolução Cultural Humanista que prosperou na Europa após o Renascimento?
Especular filosoficamente sobre efeitos colaterais não edificantes, decorrentes da manifestação cultural mais festejada e divulgada da nossa civilização estava longe de ser meu intento inicial, mas foi onde Freud havia me levado afinal. O x da questão já se impunha em proeminência: havia o homem rompido de vez com o centro espiritual da vida ao se colocar como o senhor absoluto da sua razão?
Se o Renascimento havia liberado as forças criadoras do homem para exprimir a potência mais elevada de sua arte, isto é inegável. Mas foi também o mesmo movimento que afastou o homem das fontes espirituais da vida; negou o homem espiritual para em seu lugar afirmar exclusivamente o homem natural, escravo da necessidade. Como consequência, o individualismo esvaziou a individualidade humana, privou da forma e da consistência a personalidade, pulverizou-a.
Estas novas concepções históricas provocaram um efeito devastador na minha cosmovisão. Este novo sentimento da vida e esta nova relação com o universo afastou de vez a chaga materialista e imanente que ainda habitavam meu espírito. Por mais estranho que possa parecer, o ateísta de carteirinha Freud me levou ao reencontro do homem medieval, só que desta vez não mais estereotipado, mas virtuoso. Dante Alighieri e Santo Tomás de Aquino não somente resgataram o protagonismo da alta cultura ocidental perdido desde a queda do império romano, como pavimentaram o caminho para o movimento Renascentista que emergiria nos séculos seguintes.
De volta à modernidade, restou-me consolidada a impressão que caminhamos até ao fim das vias do Humanismo e das vias do Renascimento; que não podemos ir mais além por essas vias. Ao homem ocidental moderno coube esgotar todas as ilusões humanistas até o fim, tendo chegado, no auge de sua “dialética histórica”, à quase auto-destruição.
No final das contas, creio que era este o mal estar na civilização ou o desconforto na cultura que Freud tão bem percebia e tão equivocadamente diagnosticava. A culpada metafísica cristã já se encontrava distante demais da vida intelectual europeia para merecer tal maldição. A história moderna que termina nestes dias foi concebida na época do Renascimento, não cabendo mais negar os princípios teológicos e metafísicos que haviam motivado seu aparecimento.
Vivenciamos, portanto, uma revolução de cunho espiritual de reencontro com nossas raízes filosóficas perdidas no tempo, nas escolas e, principalmente, nas universidades, curiosamente criadas no Ocidente em plena “idade das trevas”.
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