O ano era 1440; o local, Aachen, na fronteira entre a Alemanha e a França; e a ocasião era a peregrinação que ocorria a cada sete anos para a catedral de Aix-la-Chapelle, onde o clero local exibia as preciosas relíquias do início do cristianismo que eram lá guardadas. Afinal, Aix-la-Chapelle (o nome afrancesado da cidade) tornou-se a capital do Sacro Império Romano-Germânico escolhida pelo próprio Carlos Magno em algum momento no século VIII.
Johannes Gensfleish, mais conhecido como Gutenberg, não estava pensando nas relíquias da catedral ou na remissão de seus pecados, mas sobre um problema técnico: muitos peregrinos estariam muito longe para ver, sentir e tocar as relíquias (até cem mil peregrinos eram esperados). Aix-la-Chapelle encontrara então uma solução para esse problema; os peregrinos podiam comprar um ornamento pequeno, com cerca de dez centímetros de altura, que mostrava figuras sagradas, feitas de estanho. Quando as relíquias eram exibidas, eles podiam erguer esses ornamentos e captar raios que delas emanavam. Alguns desses ornamentos tinham um pequeno espelho anexado para aumentar esse efeito, e por isso eram chamados de espelhos de peregrinos.
A demanda por esses espelhos era tão grande que os ferreiros de Aix-la-Chapelle, cuja guilda gozava do monopólio de fabricação, não conseguiam atendê-la. Na expectativa da feira de 1440, o Conselho municipal decidira suspender o monopólio durante o evento. Qualquer pessoa teria permissão para vender espelhos de peregrinos. Era nisso que Gutenberg estava pensando: numa oportunidade de negócios.
Além de uma robusta formação acadêmica em latim, Gutenberg obtivera conhecimentos práticos em fundição de metais. Deste modo, eram seus conhecimentos de metalurgia que ele estava procurando levar para a fabricação de espelhos. Terminado com sucesso seu primeiro empreendimento fabril, Gutenberg retornou a Mainz (sua cidade natal) no intuito de angariar recursos para um próximo projeto ainda mais promissor. Estava claro que ele trabalhava em algo grande, alguma coisa relacionada à aplicação de sua técnica de moldar espelhos à fabricação de livros.
Vale ressaltar que o Museu Gutenberg em Mainz, que costumava celebrá-lo como o inventor da impressão com tipos móveis, corrigiu sua narrativa. Acrescentou um anexo dedicado à impressão no leste asiático, para reconhecer que o que aconteceu na Europa foi uma reinvenção, uma adaptação de técnicas já desenvolvidas em outros lugares. A experiência de Gutenberg de produção em massa de espelhos de peregrinos foi fundamental: ele inventou um mecanismo de fundição manual que permitia a uma única pessoa fundir mais de mil letras por dia. Letras produzidas em massa tornaram possível a produção em massa de livros.
Com o processo de produção básico resolvido, a grande questão era o que imprimir. A gramática latina mais comum, que dominava o mercado de escribas havia centenas de anos, levava o nome de seu autor, Donato, e com muita probabilidade foi usada pelo próprio Gutenberg. Donato era tão popular que os editores se deram ao considerável trabalho de entalhar todo o texto, página por página, em blocos de madeira, a fim de produzir versões baratas impressas em xilogravura. O resultado foi um grande sucesso: o Donato continuaria a ser um dos livros reimpressos com mais frequência nas décadas seguintes, e em 1500 já contava duzentos e sessenta edições.
Não demorou muito para que Gutenberg descobrisse uma nova oportunidade de negócio. As indulgências sempre usavam a mesma fórmula latina. Ele poderia imprimir uma única página, com o nome, data e alcance da remissão deixados em branco para serem preenchidos à mão. Ele batalhou para ganhar a concessão e conseguiu. A primeira indulgência que imprimiu, em nome do papa Nicolau V, foi para a defesa de Chipre.
Enquanto imprimia a gramática latina, indulgências e panfletos de propaganda, Gutenberg também cultivava outro projeto: imprimir a Bíblia! O Velho e o Novo Testamento juntos somariam milhares de páginas, e para isso seria necessário ampliar o processo usando várias prensas de uma só vez. Cada passo teria de ser calibrado com precisão para tomar o menor tempo possível. De fato, ele estava transformando sua oficina em um processo de produção industrial precoce, antecedendo o sistema de produção com linha de montagem que Henry Ford criaria no início do século XX.
Se a impressão alimentara a ampla disponibilidade de indulgências, algumas décadas depois já alimentava a polêmica entre elas. As tiragens dos textos de Lutero ultrapassavam em muito tudo o que já havia sido impresso; seus textos estavam disponíveis em centenas de milhares de exemplares. Não inadvertidamente, Lutero dera início à era da polêmica popular, uma era em que um escritor poderia publicar com seu próprio nome, uma era em que o sucesso seria medido pelo número de tiragens e reimpressões, uma era em que escritores e leitores estariam conectados com mais eficiência do que nunca, à margem das instituições tradicionais. A impressora estava criando um novo público de leitura e uma nova e poderosa forma de literatura: a escrita polêmica alimentada pela imprensa. Imprimir era o maior ato da graça de Deus, como Lutero gostava de dizer – e ele se considerava o mais fiel agente da imprensa.
Assim, fazendo um salto de aproximadamente duzentos e cinquenta anos, caímos no ambiente do Palais-Royal em Paris da década de 1780. Sob muitos aspectos, o Quarto Estado substituiu o Primeiro, a Igreja. Na França revolucionária, o jornalismo rapidamente reivindicou para si o antigo papel da Igreja como propagador de valores, modelos e símbolos para a sociedade em geral. De modo análogo às relações Estado-Igreja numa época anterior, as relações entre jornalistas e políticos da revolução envolveram uma profunda interdependência e periódicos conflitos. A nova classe de jornalistas intelectuais da Revolução Francesa criou tanto o senso fundamental de legitimidade como as formas de expressão da tradição revolucionária moderna.
Na véspera do primeiro aniversário da tomada da Bastilha, Bonneville se tornou o primeiro a utilizar a mais elementar arma no assalto revolucionário à linguagem. Ele substituiu o formal e aristocrático vous, ao se dirigir ao rei da França, pela forma plebeia e familiar de tratamento, tu. Nos primeiros anos da revolução, Bonneville e outros jornalistas literários realmente inventaram uma nova e pós-aristocrática forma da língua francesa, rica em neologismos, a qual fora saudada como la langue universelle de la République. Acreditava-se que o discurso espontâneo se aproximava da própria linguagem da natureza. Existia uma repulsa quase física a qualquer coisa escrita que não fosse inspirada por ideias revolucionárias.
Nesse contexto, a descoberta quase simultânea de métodos práticos para produção de papel por meio de máquinas e para a aceleração da impressão por meio de motor a vapor produziu, nos anos 1820, as primeiras grandes mudanças na imprensa dos últimos quase três séculos. O papel que Lutero, a imprensa de Gutenberg e a Bíblia vernácula tiveram no século XVI foi, sob muitos aspectos, desempenhado por Walters com o Times e Girardin com La Presse no início do século XIX.
Sem dúvida, o jornalismo foi a mais importante atividade profissional para revolucionários saint-simonianos (futuros positivistas) e hegelianos (futuros marxistas). Hegel, quando jovem estudante de teologia, havia substituído as preces matinais pela leitura de jornais ingleses – um distante prenúncio do homem educado moderno que substitui a igreja dominical pelo jornal dominical. Na década que se seguiu a 1836, a taxa de leitores de diários em Paris cresceu de setenta mil para duzentos mil. Como Edouard Alletz escreveu em 1838 no De la démocratie nouvelle: “Num país onde existe mais liberdade do que educação, a imprensa tenta determinar (e não só repetir) o que todos pensam”. Barmby, o divulgador do termo comunismo na Inglaterra da década de 1840, via a imprensa como substituto tanto de Cristo como de Sócrates: “Desde a descoberta da imprensa […] a missão do editor ultrapassou com folga a do pároco-sacerdote, a mesa de trabalho se tornou mais útil do que o púlpito, o artigo de destaque da edição de sábado mais salvador do que o arrastado sermão de domingo”.
Analisando em perspectiva, o último rei da França foi deposto literal e metaforicamente por jornalistas. Émile Girardin, fundador do primeiro jornal barato de Paris voltado para as massas, La Presse, procurou Luís Filipe e lhe disse, ao fim da manhã de 24 de fevereiro de 1848, que abdicasse de seu trono. Naquele exato momento, formava-se um novo governo provisório na redação de outro jornal (o radical La Réforme, de Flocon), depois de ter consultado o conselho editorial de um terceiro veículo (Le National, de Marrast). Um dos primeiros decretos do governo provisório garantiu ampla liberdade de imprensa. A profusão de publicações revolucionárias não caberia apenas em jornais tradicionais.
Os artesãos-impressores também foram decisivos nos acontecimentos franceses de 1848. O sindicato dos tipógrafos, que havia chegado a três mil membros já no começo da década, proporcionou uma imagem de solidariedade que se opunha tanto à mais alta burguesia como às novas e mais impessoais técnicas de impressão. Aí estava uma alternativa informal ao novo sistema econômico despersonalizado da burguesia e aos mecanismos políticos e legais que ela oferecia à classe trabalhadora. Na Inglaterra, na Bélgica e na Suiça, assim como na França, tipógrafos começaram a criar sociedades e a organizar banquetes no período de 1849 a 1851, repetindo a palavra de ordem: “Rumo à criação de uma maçonaria tipográfica universal!”.
Na verdade, Bruxelas tinha se tornado o centro tanto do jornalismo revolucionário legalizado quanto do rápido desenvolvimento industrial (no caso o telégrafo) depois da bem-sucedida Revolução Belga de 1830. A colaboração de toda vida de Marx e Engels se iniciou, portanto, com a atividade jornalística em Bruxelas: com a fundação do Comitê de Correspondência Comunista em 1846 e, no ano seguinte, do Deutsche Brüsseler Zeitung (Jornal Alemão de Bruxelas). Ademais, o jornalismo foi a única profissão remunerada praticada por Marx, Lênin e muitos outros revolucionários proeminentes durante seus longos anos de impotência e exílio.
No mundo alemão, surgia uma imprensa política antes mesmo que houvesse uma associação política legal. Marx explicou as vantagens desse desenvolvimento inverso no número de ano novo de seu jornal (Rheinische Zeitung) de 1843. Os jornais alemães podem desempenhar uma função pedagógica eminente para o despertar da imaginação política, dizia ele, e não apenas lidar com complexos interesses de grupos, como faziam os jornais ingleses e franceses. A juvenil imprensa alemã não estava limitada, de forma passiva, a “expressar os pensamentos, os interesses do povo. Você primeiro os cria, ou antes os incute no povo. Você cria o espírito de partido”.
Assim, do ponto de vista de Marx, o jornalismo tinha a responsabilidade de criar o “espírito de partido”, ancestral direto do partiinost’ de Lênin. Para ambos esses homens, o desejo de criar um espírito de partido precedeu a ideia clara de um partido político. Em Londres, já na década de 1850, Marx se atirou ainda mais profundamente no jornalismo, enriquecendo suas matérias com dados colhidos do Museu Britânico e na imprensa diária, que era alimentada pela Agência de Notícias de Reuters. Suas análises jornalísticas ajudam a justificar o fracasso em concluir sua obra mais famosa, Das kapital.
Portanto, para compreender as origens do jornalismo ideológico que teve papel tão central nos movimentos alemão e russo, deve-se começar pela história anterior do jornalismo revolucionário na França. Em relação a isso, assim como em relação a uma série de outras coisas, a Alemanha e a Rússia da segunda metade do século XIX estavam só mantendo vivas as esperanças que tinham surgido e se frustrado na França.
Perpassando o século XX; no qual a imprensa maçônica transformou-se numa complexa rede de grandes corporações midiáticas na Europa, América do Norte e também em alguns países do terceiro mundo. Para alimentar essa indústria ocorreu a ampliação em escala mundial de um importante ingrediente neste caldo cultural revolucionário: as Escolas de Jornalismo!
E finalmente, na segunda década do século XXI, vivenciamos a era digital na esteira da internet. Um novo modo de produção e divulgação de textos e imagens provocou um impacto cultural ainda impossível de mensurar. Algumas situações decorrentes desse evento, no entanto, já podem ser percebidas com alguma nitidez:
- a essência maçônica de toda a mídia republicana criada na Revolução Francesa nunca foi perdida;
- a imprensa nunca quis ser o quarto Poder, mas sim o primeiro;
- o jornalista ideológico não pretende expressar o pensamento e interesse do povo, mas sim moldá-los;
- monopólios de divulgação de informação e propaganda foram quebrados;
- a reação das instituições oficiais a esta quebra está em curso.
Tendo em vista este presente estado das coisas, resta aos amantes da sabedoria as seguintes reflexões:
- estaríamos vivendo uma mudança de ciclo semelhante à desconstrução de Poder ocorridas na Revolução Protestante e na Revolução Francesa?;
- será consolidado o Poder secular maçônico iniciado pós Revolução Francesa (representado hoje pela ONU e sua agenda 2030) ou a aliança geopolítica protagonizada pela China prevalecerá?
- temos alternativa aos sistemas seculares de Poder?
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Respostas de 3
E pensar que cursei jornalismo fascinada pelo
Ideal romântico de defesa da verdade acessível a todos
Achei muito interessante o artigo e instigante as reflexões propostas.
Excelente trabalho! Será uma boa ferramenta para os que pugnam pelo retorno de nossa pátria à trilha da liberdade, através do conhecimento, que conduz à verdade.