a comuna de paris e a tradicao revolucionaria
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A Comuna de Paris e a tradição revolucionária

Por quase um século, desde a Grande Revolução de 1789, Paris tinha sido o principal centro de expectativas e o palco da cultura revolucionária moderna. Lá, as fantasias de intelectuais proporcionaram ideais espirituais para uma era materialista, e prefigurações proféticas de quase todos os movimentos revolucionários vindouros.

No intuito de legitimar sua revolução através da santificação de um lugar, de um processo ou mesmo de uma estética, os franceses não deixavam também de tentar precisar em palavras as suas crenças. Havia uma tendência, contudo, à simplificação radical, na medida em que tentavam cada vez mais substituir argumentos por rótulos. Nesse contexto emergiu o propósito de uma sociedade secular submetida à soberania popular; o grande lema desse período: liberdade, igualdade e fraternidade.

Seguindo a cronologia dessa nova cultura iniciada no século XVIII, primeiro houve o ideal político de assegurar a liberdade por meio de uma república constitucional. Essa foi a causa revolucionária original da liberdade – definida em termos de direitos constitucionais e de legislaturas populares. Tanto a propriedade quanto os indivíduos tinham de ser libertados do jugo tradicional da autoridade improdutiva – uma ideia que tornou o ideal republicano atrativo a empreendedores de toda espécie.

Em segundo lugar, houve o ideal emocional de experimentar o companheirismo em um novo tipo de nação. Era essa a visão romântica da fraternidade: a descoberta, em meio à luta contra os outros, de que o próximo é um irmão – linguística, cultural e geograficamente – filho como nós de uma mesma pátria.

Por fim, veio o ideal intelectual de criar uma comunidade socioeconômica não hierárquica. Era esse o conceito racionalista de igualdade: a partilha coletiva de bens numa comunidade livre de todas as distinções sociais e econômicas.

Em termos gerais, o primeiro ideal pode ser identificado com o reformismo iluminista do século XVIII; o segundo, com o nacionalismo romântico do século XIX; o terceiro, com o comunismo autoritário do século XX. A história da tradição revolucionária pós-1789 viria a atestar a difusão gradual e quase universal do primeiro desses ideais – ao que se seguiria um conflito crescente entre os outros dois ideais. Embora a aspiração por “libertação” política tivesse se difundido a partir da França do século XVIII para a Europa como um todo no século XIX, e daí para o mundo inteiro no XX, a ruptura entre os ideais rivais de revolução nacional e revolução social se ampliou e se aprofundou.

Até a Revolução de 1830, a causa revolucionária nacional foi em toda parte identificada com o constitucionalismo liberal. Daí em diante, contudo, os revolucionários separaram cada vez mais o ideal nacionalista de fraternité da liberté dos liberais – especialmente na Europa central e oriental. E na Europa ocidental o liberalismo constitucional perdeu parte dos elos que antes mantinha com o nacionalismo revolucionário – tornando-se uma alternativa gradualista e experimental à via revolucionária, cuja ênfase em ideologia e violência era cada vez maior.

O período entre 1830 e 1848 testemunhou o mais fundamental conflito interno à tradição revolucionária moderna, aquele entre revolução nacional e revolução social. Esse conflito era, em essência, uma oposição entre romantismo e racionalismo: o amor emocional dos nacionalistas pelo único e orgânico contra a atenção intelectual dos socialistas voltada para leis gerais e análise mecanicista.

A incapacidade de cada uma dessas tradições de compreender a outra pode ser ilustrada pelo elogio inacreditavelmente inexato do nacionalismo feito por Karl Marx no Manifesto Comunista, escrito às vésperas das insurreições nacionalistas de 1848: “Os operários não possuem país algum (…) Diferenças nacionais e antagonismos entre os povos vão dia a dia desaparecendo (…)”       

Assim, o nacionalismo, e não o socialismo, permaneceu o ideal revolucionário predominante mesmo após os fracassos de 1848-1850. A Primeira Internacional, que se chamava explicitamente Associação Internacional dos Trabalhadores, buscou liderança primeiro em Mazzini (nacionalista italiano), só depois se voltando para Marx quando de sua fundação em 1864.

Mais que qualquer outro movimento partícipe da tradição revolucionária, o comunismo nasceu com o seu nome. Como ideal político e talismã verbal, o comunismo originou-se não com os trabalhadores, mas sim em meio a intelectuais que promoveram a liderança por meio de Organizações transnacionais bem como antinacionalistas. Em 1840, John Goodwin Barmby popularizou o termo na Inglaterra e descreveu o comunismo como a “ciência societária” e religião final da humanidade. Seu “Credo” proclamava: “Eu creio… que o divino é o comunismo, que o demoníaco é o individualismo…”. Assim, esse comunista pioneiro proclamou a morte do diabo de maneira tão decisiva quanto os comunistas posteriores anunciariam a morte de Deus.

Na Alemanha, essa tendência de identificar comunismo com religião era bastante disseminada e especificamente cristã. Os únicos livros citados por Wilhelm Weitling (alfaiate prussiano com talento literário) em seu manifesto para a Liga dos Justos, A Humanidade como ela é e como deveria ser, foram a Bíblia e as Palavras de um crente do filósofo clerical francês Robert de Lamennais.

De fato, o comunismo provavelmente não teria de imediato atraído tanto atenção sem essa mistura inicial com ideias cristãs. Esse débito para com a religião permanece inconfesso ou obscurecido por historiadores revolucionários e comunistas. Já em 1845 a maré estava virando para a direção do comunismo irreligioso que Barmby temia. A formação da Liga dos Comunistas em dezembro de 1847 representou a fusão dos principais grupos comunistas que se opunham à religiosidade de Weitling e Barmby: Liga dos Justos, de Londres, e o Comitê de Correspondência Comunista, de Bruxelas. O ateísmo revolucionário que Karl Marx extraiu de Ludwig Feuerbach foi a nova força unificante.

Com efeito, o elemento novo e decisivo que Marx trouxe para o comunismo foi o materialismo dialético. Eis aí, finalmente, uma ideologia revolucionária pronta com uma perspectiva histórica dinâmica. Foi aperfeiçoada nos três anos que ele passou em Bruxelas, de 1845 a 1848, os mais felizes de sua vida. Filosoficamente, Marx recorreu basicamente a três novas atitudes características dos radicais hegelianos do início da década de 1840: o negativismo, o materialismo e o ateísmo. Deve-se usar o próprio método dialético de Hegel para explicar como essas ideias revolucionárias podem ser extraídas de um professor prussiano patriota, politicamente moderado, filosoficamente idealista, sinceramente luterano, como era Hegel. Parece mesmo um desenvolvimento “irônico” de “antíteses”, por meio do qual a “astúcia da razão” representava o “espírito da época”.

Tendo depositado, no início, esperanças exageradas no Estado prussiano, os incansáveis jovens hegelianos racionalizaram sua desilusão no início dos anos 1840 cultivando a ideia sublime de sua total destruição. Uma vez que a história avança por contradições (a dialética “negação da negação”), e uma vez que o Estado havia se tornado uma força negativa, o dever histórico deles era agora “negar” o Estado, ao invés de endeusá-lo.

Os hegelianos radicais também passaram do idealismo para o materialismo filosófico em meados da década de 1840. Ludwig Feuerbach advogou o pensamento de que o “espírito da época” de Hegel não era nada mais que o conglomerado de forças materiais. Em agosto de 1844, Marx confessou ter amor por Feuerbach – um sentimento que ele raramente expressava – por apontar o caminho filosófico até o socialismo.

Em seu livro A essência do cristianismo de 1841, Feuerbach distinguia a essência verdadeira ou antropológica da religião (a necessidade que o homem possui de um propósito moral mais elevado) de sua essência falsa ou teológica (a crença em Deus). Marx distanciou-se apenas do esforço de Feuerbach para criar uma nova religião secular. Embora religiosa em sua natureza, a ideologia de Marx jamais poderia ser religiosa em seu nome. A insistência de que ela era “científica” ajudou a protegê-la do fluxo e refluxo de entusiasmo que empesteava doutrinas revolucionárias rivais. Lênin depois rejeitou as tendências de “construir Deus” dentro do seu movimento, e marxistas-leninistas posteriores rejeitaram continuamente lealdades religiosas de quaisquer espécies em seus quadros.

O pequeno grupo de emigrados alemães a que Marx buscou transmitir sua ideologia representava uma autêntica intelligentsia revolucionária. O método dialético oferecia segurança contra a desilusão; o materialismo garantia relevância em um período de tensão socioeconômica; e, mais importante que tudo, Marx era um líder ideológico incansável e seu gênio ofereceu aos revolucionários de toda parte um novo tipo de abrigo em algo universal. Esse algo combinava historicismo hegeliano com cientificismo positivista: inevitabilidade e perfectibilidade. Enquanto outros socialistas e comunistas ofereciam ideias revolucionárias, Marx oferecia uma ideologia revolucionária!

Podemos concluir, portanto, que foi durante a década de 1840 que a palavra comunismo adquiriu um sentido diverso de socialismo. Mas havia, isto é certo, muita confusão e superposição de sentido entre uma palavra e outra. Alguns, como Marx, às vezes utilizavam os termos de maneira intercambiável. Primeiramente, comunismo sugeria um controle social mais abrangente do que o socialismo – controle tanto da produção quanto do consumo. A comuna era uma nova forma de vida compartilhada, não apenas uma nova forma de controle social. Em segundo lugar, o comunismo foi cada vez mais associado a uma visão de mundo científica e materialista, em contraste com o socialismo moralista e idealista. Por último, o comunismo era amplamente associado à violência política, associação que raramente se fazia no caso do socialismo. Essa identificação estava presente desde o começo. Em 1840, quando um dos primeiros comunistas tentou matar o rei, o julgamento relacionou os communistes immédiats a meios violentos. Lammenais sustentou em 1841 que os comunistas, diferentemente dos socialistas, tinham de realizar a “igualdade rigorosa e absoluta”, e assim seriam forçados “de uma forma ou de outra” a fazer uso da força, do despotismo e da ditadura para estabelecê-la e mantê-la.

Apesar da retórica retumbante de suas palavras finais – “TRABALHADORES DO MUNDO, UNI-VOS!”-, o Manifesto Comunista passou em larga medida despercebido até muito depois das revoluções de 1848-1849. Como um documento de seu tempo, foi impreciso em duas de suas principais previsões para o futuro imediato: a de que os antagonismos nacionais estavam desaparecendo frente a um novo proletariado transnacional; e a de que a vindoura onda revolucionária se concentraria na Alemanha e passaria de revolução burguesa a revolução proletária.

A principal conclusão imediata de Marx em torno dos reveses de 1848/49 foi a de que se fazia necessária uma ditadura revolucionária para agir em prol do proletariado. Ao propor essa doutrina, aproximou-se bastante de Auguste Blanqui, cujas ideias também dariam reforço a Lênin em época posterior. Marx criou, em janeiro de 1850, a expressão “ditadura da classe trabalhadora” em lugar da expressão anterior “governo do proletariado”. Embora o cite como um “corajoso lema da luta revolucionária” que havia aparecido anonimamente na Paris de 1848, parece provável que ele simplesmente o tenha tomado dos blanquistas.

A sugestão de que haja influência blanquista sobre Marx é anátema para os marxistas, que parecem comprometidos tanto com exagerar a originalidade de Marx quanto em caricaturar o “blanquismo”. Pois essa influência durante o período em questão é ainda mais ilustrada pela apropriação por Marx de outro termo que se tornaria importante para a história revolucionária: revolução permanente. Quando, em 1852, foi publicado o seu famoso O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, Marx considerava Blanqui e os seus camaradas como “os verdadeiros líderes do partido proletário, os comunistas revolucionários”. (Esse trecho foi extirpado das últimas edições, depois que Marx começou a ver Blanqui mais como um rival do que como um aliado. Não existe anotação alguma do expurgo na edição soviética supostamente completa e acadêmica). Joseph Weydemeyer, amigo íntimo de Marx, escreveu em Nova York um artigo militante em 5 de março de 1852: “A luta de classes necessariamente leva à ditadura do proletariado, a qual constitui apenas a transição para a abolição de todas as classes e para uma sociedade sem classes”.

Consolidada então a defesa de uma ditadura revolucionária centralizada em nome de um proletariado monolítico e mitológico, Marx acentuou o conflito já aberto em meio aos revolucionários sociais entre ele e o apaixonadamente antiideológico e anticentralizador Pierre-Joseph Proudhon. A batalha entre marxistas e prodhonistas foi central para a história flutuante da Primeira Internacional de 1864 a 1876 – e para as tensões que depois ocorreriam entre revolucionários latinos e eslavos, de um lado, e sociais-democratas alemães, de outro.

Proudhon era a personalidade radical mais chamativa e famosa da França: autenticamente plebeu e temivelmente polêmico. Ele representava um elo tanto com a França revolucionária que os alemães admiravam quanto com o proletariado a que Marx professava servir. Marx admirava em particular o poder e a simplicidade do livro de Proudhon O que é propriedade? (1841). A resposta sem rodeios foi: “propriedade é roubo”, e chegou ao ponto de sugerir que o “proletário” expropriasse o proprietário e estabelecesse direitos de propriedade iguais para todos. Ao longo de 1844, Marx chamou a referida obra de “manifesto científico do proletariado francês”.

Desse modo, o conflito pessoal entre Marx e Proudhon se tornou parte de uma luta organizacional pela fidelidade dos revolucionários sociais. A colaboração de Marx e Engels foi selada e seus primeiros esforços de organização foram conduzidos tendo como pano de fundo a polêmica com Proudhon.

Mesmo após seu falecimento em 1865, o fantasma de Proudhon viveu o suficiente para assombrar Marx pelo menos pelo resto do século XIX. A oposição proudhonista ao centralismo e ao dogma ideológico predominou tanto na Primeira Internacional quanto na Comuna de Paris de 1871 – os dois mais importantes acontecimentos para o desenvolvimento da tradição revolucionária social no Ocidente. Embora não estivesse presente em nenhum dos primeiros congressos da Internacional, Marx exerceu controle cada vez maior por meio de sua posição no Conselho Geral e seu talento enérgico de redator e de tático. O Congresso de Bruxelas de 1868, que atraiu o número recorde de 100 delegados, comprometeu a Organização com a política de nacionalização dos meios de produção – em grande parte por meio do cortejo de membros da inchada delegação belga, afastando-os da posição proudhonista francesa.

À primeira vista, a intensidade da luta entre ambos surpreende. Conservadores, liberais e os primeiros socialistas românticos, todos viam muitas similaridades entre os dois. Tomados em conjunto, Marx e Proudhon representaram o ponto de transição – um ponto, de fato, sem retorno – da teorização sentimental pré-1848 para a rigidez realista dos movimentos revolucionários de massa modernos. Ambos acreditavam que todos os socialismos anteriores eram utópicos; rejeitavam as instituições tradicionais do liberalismo burguês mais sistematicamente que seus antecessores, e se opunham profundamente ao nacionalismo e ao ideal de libertação nacional.

Porém, ainda assim, as diferenças entre eles – e entre seus partidários conscientes e herdeiros inconscientes – eram profundas. Marx era um autêntico produto da autoconfiança intelectual da Universidade de Berlim (colocou Hegel de cabeça para baixo ao tornar sua teoria materialista em vez de idealista); considerava que a revolução seria realizada mediante a conquista proletária do poder político e que esse processo exigiria um novo tipo de partido e uma provisória “ditadura do proletariado”; e que a propriedade fosse abolida. Proudhon era um plebeu autodidata com enormes suspeitas para com abstrações intelectuais; tinha uma visão da história mais próxima do moralismo de Kant do que do historicismo de Hegel; acreditava que a revolução só poderia ser realizada por meio de mudança econômica e social concreta (processo que exigia a rejeição de qualquer atividade política); e que a propriedade deveria ser distribuída ao invés de abolida.

Embora mais conhecido por sua influência sobre socialistas franceses e anarquistas estrangeiros, Proudhon também influenciou muitos profetas religiosos não ortodoxos da mudança social radical, porém não violenta. Tolstói extraiu de Proudhon o título de seu mais importante romance, Guerra e Paz, e algumas de suas ideias posteriores. Martin Buber viu no mutualismo de Proudhon parte da inspiração moral para os kibutzim israelenses, os quais por sua vez se constituíram em uma abordagem da propriedade social que rivalizava com a da coletivização soviética.

Voltando a narrativa ao nacionalismo revolucionário, este sofreu uma dramática metamorfose na segunda metade do século XIX. Os ideais inspirados pela Declaração Americana de Independência e de uma nova visão de liberdade descoberta por meio de lutas nacionais começaram a decair depois do fracasso da Revolução de 1848. A morte veio com a separação decisiva entre nacionalismo e ideal revolucionário no coração da Europa.

Foi a força industrial-militar-diplomática de um Estado estabelecido, e não uma revolta romântica em nome do novo valor nacionalista, que realizou a unificação da Itália e da Alemanha ao longo da década de 1860. Esse novo nacionalismo da era imperial europeia – e a reação revolucionária a ele – fazem parte de outra história: o drama global do século XX. Aqui vamos tratar apenas da morte do velho nacionalismo revolucionário no período decisivo que se encerra com a Guerra Franco-Prussiana de 1870-71 e a última das revoluções francesas de 1871 (um divisor de águas).

A Comuna de Paris foi a maior insurreição urbana do século XIX e precipitou a mais sangrenta repressão. Foi um marco na história: a última das revoluções com origem em Paris, a qual deu cabo da dominação francesa da tradição revolucionária. Esse acontecimento foi o primeiro exemplo de desafio lançado pelas massas ao novo Estado militar-industrial da Europa. A Comuna criou, ainda que só por um breve período, uma abordagem revolucionária alternativa à organização da autoridade na sociedade moderna.

As revoluções posteriores bem-sucedidas seguiram o exemplo dos communards de só fazer revolução no momento em que se iniciarem guerras. Enquanto os levantes de 1789, 1830 e 1848 ocorreram em tempos de paz, as que abalaram a Rússia em 1905 e 1917, bem como as que levaram outros regimes comunistas ao poder na China, na Iugoslávia e no Vietnã, foram desenvolvimentos diretos de guerras estrangeiras.

A Comuna consistiu no simples fato de que uma aliança revolucionária governou Paris por 72 dias na primavera de 1871. Iniciou-se como um protesto patriótico contra a capitulação do governo provisório francês ao cerco prussiano de Paris depois da derrota e fuga de Napoleão III em setembro de 1870. Mas a Comuna logo se tornou um veículo de protesto proletário contra o Estado centralizado moderno. Uma revolução social interna se tornou um meio de resgatar o orgulho de uma nação depois que o Estado havia sofrido uma derrota estrangeira.

Para o historiador da tradição revolucionária, a Comuna representa um ponto de virada no predomínio prévio da revolução política nacional para a ênfase posterior na revolução social transnacional. É certo que insurreição se originou de uma intensificação da militância nacionalista durante a guerra com a Prússia iniciada no verão de 1870. O Comitê Central de Paris da numerosíssima Guarda Nacional se opôs ao armistício de janeiro de 1871 e falou das possibilidades de resistência por meio de um novo levée em masse. Paris passou de nacionalista a revolucionária quando o novo governo central de Thiers tentou sem sucesso se apossar das armas da Guarda Nacional parisiense no dia 18 de março de 1871. Thiers fugiu para Versalhes, e os líderes patrióticos da França elegeram uma Comuna de 81 membros como governo paralelo – ou, como alguns diriam, como um inimigo de qualquer tipo de governo.

Essa nova forma participativa de administração revolucionária resistiu até o fim às exigências jacobinas e blanquistas de uma liderança executiva forte e combateu a autoridade da Assembléia Nacional republicana em Versalhes. A Comuna tentou ir além da política tradicional, revivendo, pela primeira vez desde 1792-1794, sonhos de uma transformação fundamental da condição humana.

Havia um elemento proletário autêntico nos esforços da Comuna de estabelecer uma organização industrial cooperativa e uma educação secular voltada para a formação profissional. A palavra-talismã dessa inesperada revolução social foi a própria palavra “comuna”. Para a maioria, ela sugeria uma demanda por descentralização da autoridade – um Estado federativo no qual pequenos grupos ou unidades autogovernadas se tornam a característica dominante. Marx e a Primeira Internacional não eram mais que distantes comentadores dos acontecimentos.

Um estranho ar festivo pairou sobre Paris no período da sauveraineté sauvage das massas, dos desfiles que proclamaram a Comuna no dia 28 de março à destruição arrebatadora de um totem do culto napoleônico, a Coluna de Vendôme, no dia 16 de maio, poucas horas antes que a Comuna fosse esmagada. Na “semana sangrenta” que veio após a entrada final das tropas de Versalhes no dia 21 de maio, cerca de 20 mil communards foram mortos e outros 13 mil mandados para o exílio.

Com o nacionalismo esmagado e o republicanismo desacreditado na França, só a revolução social permaneceu incólume como ideal revolucionário. A dureza da repressão em Paris pôs o fardo da continuidade da tradição revolucionárias sobre líderes de outras terras. Dois em particular, Bakunin e Marx, buscaram tirar lições da Comuna e levar adiante seu legado. O conflito entre ambos se tornou, com os amargos resultados da Comuna, tão central quanto havia sido a luta entre Marx e Proudhon, um quarto de século antes.

Nesse contexto, o partido da Social-Democracia alemã se tornou o primeiro corpo político organizado da época moderna a ganhar uma verdadeira adesão em massa das classes trabalhadoras. Tão ambíguo quanto seu papel na história mundial, não eram nem uma conspiração revolucionária nem um partido político operando por meio de um sistema autêntico. De fato, os Social-Democratas representavam uma ponte entre as conspirações revolucionárias francocêntricas da era europeia e os movimentos de massa e a política global do século XX.

Assim, o partido que se formou na Alemanha com o rótulo de Social-Democrata foi provavelmente a mais importante expressão política do marxismo durante o período da vida de Marx – ainda que ele estivesse bastante desligado da Internacional e ainda que não fosse disciplinado ideologicamente o suficiente para ser um “partido” no “grande sentido histórico” de Marx. O seu nome expressava o seu objetivo de uma revolução antes social do que nacional – e sua identidade como algo mais que liberalismo e algo menos que comunismo.

Com efeito, as Organizações revolucionárias, de tradição maçônica, tentaram repetidas vezes dar nova vitalidade a um velho rótulo ao ligar adjetivos inovadores à palavra democracia. Os primeiros e jovens comunistas do início dos anos 1840 se descreviam como “verdadeiros” e “fraternais” democratas. Velhos stalinistas um século depois tentaram renovar a manchada causa comunista se referindo à democracia “do povo”, à democracia “de um novo tipo” ou à democracia “nacional”. A democracia “social” foi o novo rótulo de esperança para os castigados revolucionários depois de 1848, de uma democracia mais sólida, o termo político para designar o governo do povo, com um adjetivo que sugere também justiça econômica. O termo foi invocado pela primeira vez por um grupo organizado durante o rescaldo do levante de 1849 em Baden. A Social-Democracia se tornou o rótulo principal para a nova disseminação do ideal revolucionário ao leste do Reno no fim do século XIX e, aos poucos, foi ligando-se ao marxismo.

Por fim, chegamos à terceira década do século XXI e é evidente que permanecemos atolados nesse sinistro calabouço ideológico. O debate público é propositalmente direcionado para manter a tensão popular, cada dia mais insuflada por uma nova ideologia cuidadosamente fabricada nas Universidades Ocidentais. Quanto tempo mais será necessário para que a sociedade compreenda que a finalidade última de um Estado revolucionário é manter a sociedade num perpétuo conflito em torno de ideias pré-concebidas de engenharia social?

E como identificar um Estado revolucionário? Certamente qualquer um que contenha a propaganda iluminista “republicana” em seu nome. A segunda camada dessa ambiciosa resposta é o grau da permanente insurreição: uma República liberal seria grau 1; República Social-Democrata, 2; e República Comunista, 3. Vale ressaltar que não há como existir uma República-Conservadora, pois são conceitos essencialmente contraditórios; os valores de um anulam os do outro. A presença notoriamente rara de políticos “conservadores” em posição de poder durante o século XX de maneira alguma afrontou a superestrutura republicana.

Por fim, a melhor questão para se colocar no debate atual seria: as monarquias modernas são Estados revolucionários? Os católicos dirão que sim, pois o rei de um Estado secular não submetido a uma ordem espiritual maior, torna-se, ou um tirano, ou um fantoche.

* A bibliografia deste artigo é totalmente vinculada à obra Fire in the Minds of Men de James H. Billington tradução – A Fé Revolucionária.

Autor

Alexandre Castanheira

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