Não foi hoje que eu escutei sobre o forte impacto que a Lógica do Cisne Negro provocou no ambiente ligado ao mercado financeiro. Tenho amizade próxima com um perspicaz gestor de fundos de investimento que não me deixou passar ao largo do então novo “mito da literatura financeira”. Já no ano de 2018, fui presenteado por outro amigo das ciências exatas com o segundo best-seller -“Antifrágil”- deste já celebrado autor. Ocorre que, além de ser um leitor voltado para os clássicos, naquele momento eu estava ainda iniciando minha incursão na atividade das letras. Então, as prioridades à época iam de Freud a Santo Tomás, Sócrates a Descartes (Mal Estar na Civilização e o Renascimento). Nassim Taleb teria que esperar algum tempo para ser tirado da estante.
De volta aos presentes dias de 2021, chegara a hora de deixar de lado o preconceito com a lista de sucessos do New York Times e dar uma chance ao criador ou divulgador dos jargões em voga nas altas rodas cosmopolitas pelo mundo; skin in the game, fellows! Não me arrependi. A obra em questão trouxe uma sensação um tanto peculiar para meus padrões literários: uma grata surpresa quanto a competente análise do autor sobre a imensa fragilidade dos modelos de gestão aplicados em todas as esferas da vida social, política e corporativa na modernidade; e de outro modo, uma incômoda inquietação quanto às desastrosas analogias filosóficas expostas no livro, principalmente relacionadas aos racionalistas gregos. E este será o mote desta resenha.
Comecemos com a abordagem positiva da obra. Nassim Taleb nasceu no Líbano em 1960 e refugiou-se em França com sua família devido a guerra civil libanesa, onde obteve grau de mestre em matemática e administração pela Universidade de Paris. Estas aptidões o levaram a cargos de destaque em importantes instituições financeiras atuando no trading de derivativos. Em 2006, o autor abandonou sua carreira no mercado de ações e passou a dedicar-se à vida intelectual. Com seus excelentes resultados financeiros obtidos nas crises de 1987, 2000 (bolha pontocom) e 2008 (subprime), Taleb adquiriu seu status no mundo das finanças com muito skin in the game.
A primeira e mais importante parte do livro cuida da conceituação do seu termo-título. Antifrágil, afinal, não se resume à resiliência ou à robustez. O resiliente resiste a impactos e permanece o mesmo, o antifrágil fica melhor. A antifragilidade nos faz entender melhor a fragilidade. Da mesma forma que não podemos melhorar a saúde sem reduzir a doença, ou aumentar a riqueza sem diminuir os prejuízos, antifragilidade e fragilidade são graus em um espectro. Algumas coisas se beneficiam dos impactos; elas prosperam e crescem quando estão expostas à volatilidade, ao acaso, à desordem e aos agentes estressores, e apreciam a aventura, o risco e a incerteza.
“Não queremos apenas sobreviver à incerteza, nem pura e simplesmente passar por ela. Queremos sobreviver à incerteza e, além disso – como certo tipo de romanos estoicos agressivos -, ter a última palavra. O objetivo é saber domesticar, até mesmo dominar e conquistar o invisível, o opaco e o inexplicável.” (grifos meus)
A mensagem fundamental é que, ao apreender os mecanismos da antifragilidade, podemos construir um guia amplo e sistemático da tomada de decisões não preditivas, dominado pela incerteza e aplicável nos negócios, na política, na medicina e na vida em geral – onde quer que reine o desconhecido, em qualquer situação em que haja aleatoriedade, imprevisibilidade, opacidade ou a compreensão incompleta das coisas. Seria muito mais fácil descobrir se algo é frágil do que prever a ocorrência de um evento capaz de prejudicá-lo.
A narrativa segue apontando o esgotamento dos sistemas modernos uma vez que passamos a tratar um organismo como uma máquina descomplicada, realizando simplificações ou reduções idênticas a um leito de Procusto (um estalajadeiro da mitologia grega que, para fazer com que os viajantes se encaixassem em sua cama, cortava as pernas daqueles muito altos e estendia as daqueles muito baixos, fazendo com que a cama se encaixasse perfeitamente ao visitante). Estaríamos fragilizando os sistemas sociais e econômicos negando-lhes os agentes estressores e a aleatoriedade. Muitas vezes fazemos isso com a mais nobre das intenções, pois somos pressionados a “consertar” as coisas – por isso, frequentemente, nós as arruinamos com nosso medo da aleatoriedade e com nosso gosto pela suavidade.
“Estamos entrando em uma fase da modernidade marcada pelos lobistas, pelas sociedades anônimas muito, muito limitadas, pelo MBA, pelos problemas idiotas, pela secularização (ou melhor, pela reinvenção de novos valores sagrados, como bandeiras para substituir altares), pelo tributador, pelos fins de semana em lugares interessantes e pela jornada de trabalho menos interessante. No cerne de tudo isso está a negação da antifragilidade.”
Chegamos ao ponto que praticamente todas as posições de Poder nas instituições públicas e privadas são ocupadas por fragilistas,ou seja, pessoas que não tem nada a perder com o fracasso de seus respectivos modelos políticos, econômicos, medicinais, psicológicos, etc. O fragilista se apaixona pela ilusão do alcance do conhecimento cientifico tornando-se então cego às incertezas e ao misterioso na vida.
“Queremos prognosticadores que tenham cicatrizes visíveis em seu corpo em função de seus erros de prognóstico, e não que distribuam esses erros para a sociedade.”
Na verdade, a compreensão desse conceito criado artificialmente pelo autor no intuito de fundamentar toda uma ciência analítica aplicada na vida prática, já ensejaria, por si só, centenas de ensaios filosóficos. Nesse passo, a ideia aqui é alçar a discussão geral a possibilidade de abordar um pouco mais este conceito certamente trabalhado com afinco pelo autor, porém, aplicando-se uma filosofia, no meu entender, mais adequada ao que se está querendo explicar.
O fato é que, se os leitores ou ouvintes do Sr. Taleb não compreenderem satisfatoriamente o conceito de antifrágil, todas as analogias, gráficos e elucubrações feitas em mais de quinhentas páginas da edição impressa da obra torna-se-iam mais ou menos fragilizadas, o que acredito ser tudo o que o autor não gostaria. Deste modo, cuidarei aqui de apresentar-lhes uma visão filosófica escolástica da antifragilidade.
Não há nada mais comum nos tempos atuais que a ideia de que o estoicismo foi a mais completa doutrina filosófica da antiguidade, principalmente por ter sido ela melhor absorvida pelas elites romanas no auge do Império. De forma alguma quero dizer que os estoicos não deixaram seu legado na formação do caráter civilizacional do ocidente, mas não foi esta corrente filosófica a que forneceu o mais poderoso e sistemático fundamento intelectual para nossa milenar cultura.
A tradição estoica foi desenvolvida na Grécia e se caracterizou por uma ética em que a imperturbabilidade, a extirpação das paixões e a aceitação resignada do destino são as marcas fundamentais do homem sábio, tendo como principal objetivo estabelecer uma vida harmônica entre o homem e a natureza. Assim sendo, a abstração do guerreiro romano estoico agressivo acima destacado não combina bem com um sábio resignado com seu destino e extirpado de suas paixões. O estoicismo foi uma filosofia praticada pelas elites greco-romanas, um modus vivendi equilibrado e virtuoso. Por isso, acredito que um cavaleiro medieval seria uma alegoria mais apropriada para personificar um guerreiro cheio de paixão pretendido pelo autor.
Não é também curioso que um ensaio filosófico, que intenta inserir um novo conceito metafísico (conhecimento inteligível sem conteúdo empírico, fruto de uma atitude intelectual, consciente e reflexiva) na ordem cultural do dia; não ter sequer uma menção à metafísica em toda obra? Pior, faz alusões sistemáticas à filosofia aristotélica (pelo menos 15 citações no índice remissivo) totalmente “amputadas” da sua essência.
A principal analogia trabalhada no livro para demonstração matemática ou científica da teoria antifragilista do autor é a estratégia barbell (aquela barra de pesos das academias de ginástica), que consistiria numa hipotética combinação de dois extremos preferencialmente assimétricos e sem nada no meio, sendo um dos lados seguro e o outro especulativo. Com isso, praticamente todas as soluções para a incerteza dos eventos poderiam ser medidas ou estimadas avaliando-se a “densidade” da probabilidade no decorrer do tempo. Usando um exemplo básico de finanças, se alguém colocar 90% de seus recursos em um fundo comum (supondo proteção inflacionária) e 10% em títulos muito arriscados, será difícil perder mais do que 10%, desde que se esteja exposto a obter mais vantagens. Alguém que tenha 100% em chamados títulos de “risco médio” corre o risco de perda total em função da má avaliação dos riscos. A estratégia barbell corrigiria o problema da incomensurabilidade dos riscos de eventos raros e de sua fragilidade aos erros de estimativa, pois a antifragilidade é a combinação da agressividade com a paranoia! Elimine suas desvantagens, proteja-se contra os danos extremos e deixe as vantagens, os Cisnes Negros ou eventos raros positivos, cuidarem de si mesmos.
Assim chegamos na analogia filosófica da estratégia barbell levada constantemente pelo autor até o final da obra: a oposição talesiana/aristotélica. A intenção do ensaísta com essa figura de linguagem foi demonstrar que qualquer evento a ser demonstrado em ganhos e perdas ao longo do tempo NÃO tem como ser linear, pois a própria natureza das coisas e suas opcionalidades impossibilitam a linearidade absoluta de qualquer evento que seja. Se alguém lembrou da física quântica lendo este parágrafo, pretendo abordar este tópico em breve.
Sendo assim, a escola jônica de Tales de Mileto, fundadora da filosofia naturalista em 600 a.C., estaria mais de acordo com a descrição metafísica dos eventos (de acordo com a estratégia barbell) que o lógico puro Aristóteles, que estaria concentrado ferrenhamente no que é certo ou errado, deixando de lado as diversas lacunas que fazem parte de qualquer evento que ocorre no espaço e no tempo. Nada mais enganoso! O principal motivo que enseja a má interpretação da filosofia aristotélica pelos modernos foi a fragmentação da obra do Estagirita após sua morte, que assim permaneceu por quase vinte séculos no Ocidente (Ateísmo Cultural). A metafísica de Aristóteles exposta na teoria das quatro causas da existência: material, formal, eficiente e final não pode ser bem compreendida sem um entendimento completo sobre os níveis ou graus da realidade existente elaborada em sua obra.
Se não podemos compreender o Realismo aristotélico sem a visão geral das quatro causas existenciais, o mesmo vale para as ciências do discurso elaboradas pelo mesmo gênio-filósofo durante sua portentosa carreira. Ocorre que, neste caso, seus tratados sobre poética, retórica, dialética e lógica foram publicados separadamente uns dos outros ao longo da História, o que tornou quase impossível um estudo verdadeiramente abrangente da unidade do pensamento discursivo construída pelo mestre.
*As quatro ciências do discurso tratam de quatro maneiras pelas quais o homem pode, pela palavra, influenciar a mente de outro homem, ou a sua própria, e caracterizam-se por seus respectivos níveis de credibilidade:
- O discurso poético versa sobre o possível, dirigindo-se sobretudo à imaginação, que capta aquilo que ela mesmo presume (imagem, representação).
- O discurso retórico tem por objeto o verossímil e por meta a produção de uma crença firme que supõe, para além da mera presunção imaginativa, a anuência da vontade; e o homem influencia a vontade de um outro homem por meio da persuasão, que é uma ação psicológica fundada nas crenças comuns.
- O discurso dialético já não se limita a sugerir ou impor uma crença, mas submete as crenças à prova, mediante ensaios e tentativas de traspassá-las por objeções. É o pensamento que vai e vem, por vias transversas, buscando a verdade entre os erros e o erro entre as verdades; a probabilidade maior ou menor de uma crença ou tese.
- O discurso lógico ou analítico, finalmente, partindo sempre de premissas admitidas como indiscutivelmente certas, chega, pelo encadeamento silogístico, à demonstração certa da veracidade das conclusões.
É visível que há aí uma escala de credibilidade crescente: do possível subimos ao verossímil, deste para o provável e finalmente para o certo ou verdadeiro. As palavras mesmo usadas por Aristóteles para caracterizar os objetivos de cada discurso evidenciam essa gradação: há, portanto, entre os quatro discursos, menos uma diferença de natureza que de grau. A consequência disto é tão óbvia que chega a ser espantoso que quase ninguém a tenha percebido: as quatro ciências são inseparáveis; tomadas isoladamente, não fazem nenhum sentido.
De discurso em discurso, há um afunilamento progressivo, um estreitamento do admissível: da ilimitada abertura do mundo das possibilidades passamos à esfera mais restrita das crenças realmente aceitas na praxis coletiva. A esfera própria de cada uma das quatro ciências é, portanto, delimitada pela contiguidade da antecedente e da subsequente. Dispostas em círculos concêntricos, elas formam o mapeamento completo das comunicações entre os homens civilizados, a esfera do saber racional possível.
Com essa exposição, espero deixar claro o motivo da minha inquietação com os fundamentos da estratégia barbell apresentada por Taleb em sua obra. Não há como reduzir a filosofia de Aristóteles ao seu tratado de lógica, amputado de sua metafísica (Ciência e Filosofia). Na analogia em questão, o autor tratou a razão científica aristotélica como o fruto supremo de uma árvore suspensa sem tronco nem raiz, como se a lógica excluísse, por definição, nuances e, considerando-se que a verdade está nas nuances, tratar-se-ia de um instrumento inútil para encontrar a verdade.
Com efeito, o ensaísta em análise faz uma confusão dos diabos com a noologia -esfera do conhecimento filosófico responsável pela investigação da cognição humana. Sem conhecer o conceito de universais de Platão, o que ele de fato promoveu com sua analogia filosófica foi sobrepor a intuição à racionalização no processo cognitivo de conhecimento humano, ao invés de entendê-lo como um processo contínuo, complementar e necessário; conforme consolidou a corrente realista socrática- aristotélica.
Por fim, não é objetivo deste artigo expor de maneira destrutiva os atributos filosóficos do talentoso financista libanês, pelo contrário, o intuito é lançar um olhar diferenciado na abordagem do conceito proposto pelo autor. Trazendo ao debate concepções abstratas pouco conhecidas pela população; como metafísica, transcendência, cosmovisão e outras, podemos incrementar o entendimento do público em geral sobre as questões intrínsecas à antifragilidade. Certamente, a absolutização da ideia de domínio do homem sobre a natureza a partir do Renascimento resultou numa série de problemas cada vez mais potencializados na modernidade. A vida humana é sim frágil, repleta de riscos e incertezas que na maioria das vezes não temos como controlar – e não há tecnologia que mudará essa condição.
O que eu poderia sugerir ao prezado colega antissistema Nassim Taleb, neste momento, é uma profunda investida intelectual na filosofia escolástica, personificada nas obras de Santo Tomás. Assim se evitaria depararmos com o entendimento, na única menção ao Doutor Angélico no capítulo “A falácia teleológica”, que a teologia estruturada no direcionamento do homem a Deus dos escolásticos seria uma falácia do tipo “o homem já conhece naturalmente o seu destino”. Taleb também poderia apreender talvez o conceito mais fecundo na história da filosofia e também da ciência, o de desenvolvimento orgânico; no qual acredita-se que só se pode conhecer bem um ente ou fenômeno quando se estuda a sua gênese e o desenvolvimento progressivo das estruturas internas que o constituem. Foi essa técnica filosófica elaborada por Aristóteles e aperfeiçoada durante séculos na Idade Média, que culminou com a Suma Teológica de Aquino no século XIII.
Ouso dizer que essa concepção metafísica da realidade iniciada por Sócrates, estruturada por Aristóteles e desenvolvida pelos pensadores cristãos ao longo da História é o compêndio mais antifrágil já produzido pela inteligência humana.
*Trecho retirado do livro Aristóteles em nova perspectiva de Olavo de Carvalho
Respostas de 6
Excelente resenha! Parabéns pela clareza e objetividade…leitura muito interessante.
É uma satisfação transmitir a ideia com sucesso, José. Obrigado!
Alexandre, meus parabéns pela resenha! Assunto muito interessante!
Obrigado, Eduardo. Resenha com assunto interessante é fundamental para o intelecto.
Excelente resenha. Trouxe um novo olhar sobre a obra do Taleb. Confesso que me apeguei apenas aos conceitos técnicos dele, sem nem mesmo pensar ou cogitar esses pontos levantados aqui. Parabéns, Alê, críticas muito bem feitas com alto grau de reflexão.
O mundo está precisando desesperadamente de uma revisão filosófica, Pedro. Não serão os liberais a nos proporcionar esse olhar!