A Última Ceia Destaque
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Ateísmo cultural

Tenho me imposto, na condição de neófito literato e ainda em busca de um estilo dentro do universo ensaísta, sempre enaltecer a fonte principal da minha inspiração para cada trabalho específico. Para conceber o presente artigo, o motor inicial foi a obra A Última Superstição, do filósofo americano Edward Feser.

O primeiro capítulo do livro citado traz o relato de outro filósofo, este britânico, Anthony Flew, que até o ano de 2004 fora um dos ateus mais proeminentes do mundo. Aos 81 anos, embora não tivesse nenhuma intenção de aderir ao cristianismo nem a qualquer outra religião monoteísta tradicional, revelou que havia sido levado, por meios de argumentos filosóficos, ao reconhecimento de uma existência divina. A reação ao recém descoberto teísmo de Flew foi de sarcasmo unânime: “meus companheiros de descrença me acusaram de estupidez, traição, senilidade; e nenhum deles leu sequer uma palavra de qualquer coisa que escrevi”.

Tentando evitar o “efeito Flew”, quero deixar claro que este artigo NÃO é uma defesa ecumênica de nenhuma religião, mas única e especificamente do teísmo clássico e da moral tradicional da civilização ocidental, que, sustento, são superiores, no âmbito racional, moral e sociopolítico, a quaisquer alternativas disponíveis. A tarefa aqui será mostrar que a pretensa “guerra entre religião e ciência” é na verdade uma guerra entre sistemas filosóficos ou metafísicos rivais, a saber, a cosmovisão clássica de Platão, Aristóteles e Tomás de Aquino de um lado e a cosmovisão naturalista da qual depende o secularismo de outro.

Se no meu último artigo predominou a temática de uma meta-história, aqui far-se-á necessário discorrer sobre o conceito de metafísica para melhor compreensão do argumento geral. Mário Ferreira dos Santos em sua Filosofia e Cosmovisão ensina que seu estudo supõe um conhecimento inteligível sem conteúdo empírico, sendo ela fruto de uma atitude intelectual, consciente e reflexiva:

Quando a religião perde terreno, quando perde sua força de convicção, e muitos não têm mais vivência das suas afirmativas, surge, então, a metafísica, porque ela dá um cunho lógico aos fatos, une o efêmero ao eterno. Podemos fazer uma distinção: na esfera religiosa predomina a atitude afetiva; na metafísica, a intelectual.”

É, em suma, um saber do transcendente, do que transcende o físico, o experimental, o empírico. A relação entre o corpo e espírito é, portanto, um dos temas mais importantes dessa filosofia.

A narrativa cronológica do tema inicia-se então com o discípulo de Sócrates, Platão, que nos deu a primeira grande tentativa de combinar todos os variados temas desenvolvidos pelos filósofos precedentes em um sistema coerente e abrangente. Ele formulou uma explicação completa das relações entre a esfera material e a imaterial, o uno e o múltiplo, a mudança e a permanência e a função correta tanto dos sentidos como do intelecto no conhecimento de tudo isso; tentou mostrar de que modo o quadro metafísico resultante tinha implicações para a moralidade; e procurou demonstrar que era possível ter conhecimento objetivo, e não mera opinião, sobre todas essas coisas. Tudo isso consagrado na famosa Teoria das Formas ou Realismo.

Para compreender Platão, precisamos nos libertar do pressuposto indolente de que todas as coisas reais devem ter alguma localização no espaço e no tempo, pois o nível mais elevado da realidade não é cognoscível por meio dos sentidos, mas pela via do intelecto. Coisas materiais individuais vêm e vão; as Formas (essências), por estarem fora do espaço e do tempo, são eternas e imutáveis. O que é bom para o ser humano é inteiramente objetivo, sendo determinado pela sua essência ou forma e não tem necessariamente nada a ver com o que, contingentemente, “valorizamos” ou desejamos.

O homem que consegue sair da caverna é o filósofo, que, por conhecer as Formas, é o único que conhece a verdadeira natureza das coisas e, no entanto, está condenado a ser considerado excêntrico por aqueles que preferem ser guiados antes por emoções e aparências que pelo intelecto e pela verdade”.

Aristóteles, aluno de Platão, também é realista, mas acredita que é preciso trazer seu mestre um pouquinho de volta à terra. Para ele, as formas são reais e não são redutíveis a nada material nem mental. Contudo, ele crê que é um erro considerá-los objetos existentes em uma “terceira esfera própria”. Platão estava errado em considerar que as formas existem de maneira completamente independente do mundo material.

Foi o desenvolvimento lógico das ideias de Aristóteles – os conceitos de atualidade e potencialidade; forma e matéria; e a Teoria das Quatro Causas – que forneceu o mais poderoso e sistemático fundamento intelectual para a religião e a moralidade ocidentais e, a propósito, para a ciência, a política e a teologia em geral da história.

“Assim que se faz a diferenciação entre atualidade e potencialidade, você está a meio caminho de perceber que há e tem que haver um Deus”.

“A inter-relação entre forma e matéria é paralela à inter-relação entre atualidade e potencialidade”.

“O que quer que está no efeito deve estar contido também, de algum modo, na causa”

Todo o seu argumento, na verdade, é que existe um tipo de direcionamento a metas que existe à parte de processos de pensamento e intenções conscientes.

Esse sofisticado sistema filosófico que começara com Tales de Mileto por volta de 600 a.C. atingira seu ápice menos de trezentos anos depois, e, assim como aconteceria com o sistema escolástico dezesseis séculos mais tarde na Europa medieval, teve um domínio cultural muito breve. De fato, novas filosofias (principalmente o estoicismo) foram muito melhor absorvidas pelas elites educadas do mundo helenístico e posteriormente do Império Romano.

À medida em que a cultura materialista e desumana do universo imperial de Roma dominava o Ocidente e enfraquecia seu Poder, o melhor do conhecimento clássico migrava para o Império Bizantino sendo, em seguida, traduzido para o árabe. Foi na direção do Oriente o desenvolvimento da arquitetura, da medicina, da matemática, da literatura e da astronomia iniciadas pelos helênicos.

Enquanto isso, na Europa, uma nova comunidade espiritual surgia das ruínas do Império Romano. Entre os séculos IV e V, os padres latinos – Ambrósio, Agostinho, Leão e Gregório – foram, concretamente, os pais fundadores da cultura medieval. Por meio do árduo trabalho desses homens, os mais variados povos do Ocidente puderam ser incorporados à cristandade, adquirindo, dessa forma, uma cultura comum.

Qualquer estudo sobre as origens da cultura medieval deve inevitavelmente conceder um papel central ao estudo do monasticismo ocidental, já que o mosteiro constituiu a mais típica instituição cultural de todo esse período que se estende do declínio da civilização clássica ao aparecimento das universidades europeias no século XII – compreendendo sete séculos. Foi apenas por meio da Igreja e particularmente a partir dos esforços dos monges que tanto a tradição clássica quanto os escritos dos autores clássicos foram preservados. As escolas, bibliotecas e salas de escrita monásticas tornaram-se os meios pelos quais a alta cultura da Europa ocidental pôde sobreviver.

Por consequência, um ideal de cultura cristã que restauraria e preservaria a herança da antiga civilização e da literatura clássicas já se vislumbrava na formação do Império Carolíngio no final do século VIII. Em carta do monge Alcuíno de York para Carlos Magno:

Surgirá na França uma nova Atenas, mais esplêndida que a antiga, pois enriquecida pelos ensinamentos de Cristo, nossa Atenas superará a sabedoria da Academia de Platão”.

O desmantelamento do Império Carolíngio apenas um século depois da sua instauração gerou mais um retrocesso na organização político-social na Europa. As invasões vikings, sarracenas e magiares provocaram despovoamento de cidades, abandono das plantações e incêndios nos monastérios. Mais uma vez sob escombros, seis séculos após as primeiras invasões bárbaras, o movimento de reconstrução/reforma da Igreja não mais se limitaria à vida monástica, mas se tornaria inspiração para um movimento ainda mais amplo de mudança espiritual, que transformou o próprio espírito da cultura ocidental.

Pela primeira vez, a sociedade feudal encontrava um propósito que transcendia seus particularismos internos, unificando-a em busca de um objetivo singular sob a liderança da Igreja. Foi no período das cruzadas, a partir do século XI, quando se intensificou o intercâmbio entre as culturas feudal e islâmica; principalmente por meio das atividades da escola de tradutores de Toledo (filosofia e ciência árabe) e do comércio das repúblicas marítimas italianas com os califados. Os estudiosos de Toledo não apenas traduziram para o latim todo o corpus aristotélico em seu formato árabe, mas também produziram versões dos principais trabalhos dos grandes filósofos muçulmanos como Al Farabi e Avicena.

Nesse contexto, o espírito do humanismo medieval encontrou a sua mais completa expressão em João de Salisbury, o grande erudito britânico que tornou-se bispo de Chartres em 1176. Ele se envolveu com os novos estudos dialéticos e filosóficos das escolas catedrais e foi talvez o pioneiro do “renascimento aristotélico” por perceber a importância filosófica da “Nova Lógica”, que transformou a antiga arte escolástica de disputatio (disputa) em teoria de ciência e em ciência de pensamento. Chartres foi a última e maior das escolas catedrais, espécie de protouniversidades.

É comum datar a chegada deste novo elemento filosófico e científico a partir do Renascimento e do reflorescimento dos estudos clássicos gregos no século XV, mas o real e crítico momento deve ser colocado três séculos mais cedo, na época das universidades e das guildas. Já na Renascença, Erasmo de Roterdã viu, em Estrasburgo, um dos últimos exemplos de uma verdadeira e completa guilda medieval sobrevivente. Ele estava consciente disso quando escreveu:

Vi monarquia sem tirania, aristocracia sem facções, democracia sem tumulto, riqueza sem luxo (…) Teria sido seu destino, divino Platão, encontrar uma república como essa”.

O resultado desse grande afluxo de conhecimentos e de novas ideias, já no século XIII, acabaria dando às universidades e à sociedade internacional de estudiosos e professores que as frequentavam os materiais a partir dos quais foi possível construir uma nova síntese intelectual edificada de uma grande estrutura de pensamento, na qual cada aspecto do conhecimento é coordenado e subordinado à teologia; o destino transcendente final de cada inteligência criada.

O grande interesse dessa síntese não é sua completude lógica, pois isso já podia ser encontrado, em forma rudimentar, no currículo tradicional das primeiras escolas medievais, mas na forma em que a mentalidade da cristandade ocidental reconquistou o mundo perdido da ciência helênica e anexou o mundo estrangeiro do pensamento islâmico; sem perder, contudo, sua continuidade espiritual.

Os argumentos de Tomás de Aquino, o grande representante dessa nova Escola Filosófica, assim como os de Platão e Aristóteles, não são de caráter científico, mas metafísico. Ao contrário do que sugere o confuso uso de senso comum da palavra “científico” como sinônimo de “racional”, isso não significa que esses argumentos não são racionais; significa apenas que são uma classe de argumento racional diferente do científico (no sentido moderno do termo):

Os argumentos científicos partem de premissas empíricas e extraem conclusões meramente probabilísticas.

Os argumentos matemáticos partem de premissas puramente conceituais e extraem conclusões necessárias.

Os argumentos metafísicos como os que Tomás utiliza combinam os elementos de ambas as formas de raciocínio: tomam pontos de partida óbvios, embora empíricos, e tentam mostrar que a partir deles, junto de certas premissas conceituais, certas conclusões metafísicas se seguem necessariamente.  

Em geral, os pontos de partida dos argumentos metafísicos não são questões de controvérsia científica, mas antes premissas concernentes àquilo que a ciência, assim como o senso comum, tem necessariamente de dar por pressuposto.

A posição que resulta quando se combina a versão aristotélica de realismo à ideia de Agostinho de que as formas existem na mente divina tem seu próprio nome: realismo escolástico; sendo as Cinco Vias de Santo Tomás de Aquino seus argumentos mais famosos pela existência de Deus, destacando aqui apenas três:

1) O Motor Imóvel ou “argumento do movimento”:  a atualização de um potencial depende da atualização simultânea de outro, que depende da atualização simultânea de outro, e assim sucessivamente. Para explicar a atualização do movimento potencial de uma pedra temos de recorrer em algum momento à atualização da existência potencial de vários níveis mais profundos de realidade. A série só pode parar com um ente que é atualidade pura (ou “Ato Puro”); e, não sendo possível que haja mais de um ente que é Atualidade Pura, assim os argumentos que partem do movimento levam inevitavelmente ao monoteísmo. Sendo o primeiro membro comum a todas as séries causais essencialmente ordenadas que resultam em instâncias de mudança, o Motor Imóvel é externo a todas elas e distinto de todas elas, como aquilo que sustenta o mundo inteiro em movimento de instante a instante.

2) A Causa Primeira: nada pode causar a si mesmo; o que quer que entre na existência, ou, de maneira mais geral, o que quer que precisa ter existência acrescida à sua essência para que seja real, deve ser causado por outro. Este é o princípio da causalidade. Importa ressaltar que NÃO se afirma que “tudo tem uma causa”, apenas que o que não tem existência por conta própria DEVE ter uma causa. Assim, teria de haver um ente cuja essência simplesmente é existência; ou, de maneira mais precisa, um ente ao qual a distinção entre essência e existência não se aplica de todo, que é pura existência, puro ser: não um ente estritamente falando, mas o Ente por si.

3) A Inteligência Suprema: a ideia da causalidade final de Aristóteles é precisamente que o direcionamento a metas pode existir e existe de fato no mundo natural mesmo à parte do entendimento consciente. Tudo o que importa é que há várias causas aqui e agora que são direcionadas a certos fins aqui e agora e o argumento é que não seria possível que elas existissem de outra maneira se não houvesse um Intelecto Supremo ordenando-as aqui e agora. E isto inclui as causas que operam na evolução biológica. Isso não é uma questão de probabilidade, mas de necessidade conceitual: não é apenas improvável, mas conceitualmente impossível que pudesse haver causação final genuína sem um intelecto que a sustentasse.                  

O que quer que em última instância ordene as coisas para seus fins deve ser também em última instância a causa dessas coisas. Portanto, a Inteligência Suprema não pode deixar de ser idêntica à Causa Primeira e assim ao Motor Imóvel, com todos os atributos divinos. Todos os argumentos convergem a um e mesmo ponto: Deus, como concebido pelas religiões monoteístas.

A racionalidade – a capacidade de apreender formas ou essências e de raciocinar com base nelas – tem como fim natural ou causa final a aquisição da verdade, da compreensão do mundo ao nosso redor. E o livre-arbítrio tem como fim natural ou causa final a escolha daquelas ações que estão mais de acordo com a verdade conforme descoberta pela razão e, em particular, de acordo com a verdade sobre a própria natureza ou essência do ser humano. Isto é exatamente o que a moralidade é do ponto de vista de Aristóteles e Tomás de Aquino: a escolha habitual de ações que promovam os fins naturais hierarquicamente ordenados implicados pela natureza humana. Mas quanto mais profunda for a compreensão da natureza no mundo e das causas subjacentes a ela, mais completamente realizada será a capacidade do intelecto de conhecer a verdade. E a mais profunda verdade a respeito do mundo é que ele é causado e sustentado por Deus. A realização suprema do poder distintamente humano do intelecto é, pois, para Aristóteles e Tomás de Aquino, conhecer Deus; e a suprema realização da liberdade de escolha é viver de um modo que propicie o conhecimento de Deus.

A moralidade tradicional não se baseia então em mandamentos divinos arbitrários secundados por ameaças de punição, mas antes na análise sistemática da natureza humana originada na filosofia clássica. Pois a fé, corretamente compreendida, não contradiz a razão no mais mínimo que seja; aliás, ela não é nada menos que a disposição de manter a mente fixa precisamente naquilo que a razão lhe revelou.

Precisamos aqui fixar atenção no momento histórico. O mesmo século XIII que culminou com o coroamento e a completude de séculos de esforços continuados para se alcançar uma integração entre a doutrina religiosa cristã com a tradição intelectual da cultura da Antiguidade, marcou o final e decisivo passo da organização intelectual medieva.

A popularidade crescente das novas universidades, especialmente as de Bolonha e Paris, casou um efeito deletério sobre a educação clerical, em comparação ao tipo mais antigo de escola de catedral, devido a uma concentração nos estudos em direito em detrimento aos estudos em teologia. Essa controvérsia originada nos interesses conflitantes entre os dois ramos do clero – os regulares e os seculares – adquiriu um caráter secularista e anticlerical, antecipando a futura secularização da cultura ocidental.

Já no final do século XIII, após a morte de Tomás, um novo gênio da escolástica nascia na Escócia e combateria abertamente o tomismo em Oxford e, posteriormente, Paris e Colônia. Para Duns Scot, a vontade, no homem, prima sobre a inteligência (voluntarismo), e não basta ter demonstrado a verdade para que tudo se submeta à sua lei. Assim, apenas uma geração após o estabelecimento de um pensamento original, a metafísica de Scot trazia água para a corrente mística, em detrimento da corrente racional do intelecto. Seu discípulo, Guilherme de Ockham (o mesmo da navalha de Ockham), levando em extremo algumas das suas ideias, desembocará numa espécie de empirismo anárquico que foi bastante relevante para o surgimento do protestantismo. A Idade Média entrava em agonia e uma nova etapa se alvorava na história da humanidade.

A ideia de uma nova ciência que nos daria domínio da natureza e a promessa de novas tecnologias se sobrepôs à busca da sabedoria e da virtude pelos helênicos e ao direcionamento do homem ao seu destino posterior a esta vida pelos medievais. Em virtude do novo clima cultural que lhes moldou as percepções, os modernos passaram a orientar o empreendimento intelectual à melhoria da sina do homem nesta vida. Foram os objetivos que determinaram os argumentos, não o contrário. Especificamente, determinaram uma nova concepção do que a ciência deveria ser e poderia ser: não a busca pelas causas últimas e pelo sentido das coisas (como Aristóteles e os escolásticos a entendiam), mas antes um meio de aumentar “a conveniência e o poder humanos” através das “artes mecânicas” ou da tecnologia (Francis Bacon), e de nos tornar “mestres e donos da natureza” (René Descartes). O importante era que não se passasse muito tempo contemplando primeiros princípios e o estado das almas em detrimento da invenção de novas engenhocas. As categorias metafísicas clássicas, especialmente as aristotélicas e tomistas, foram completamente banidas da ciência.

É uma ironia gritante que a premissa básica do materialismo moderno tenha se fundado sobre a teologia! Descartes, quem deu forma articulada à nova cosmovisão, descreveu um universo mecânico constituído de (res extensa) a mover-se no espaço de acordo com leis mecânicas, mas o resto ficava relegado a res cogitans, ou intelecto, que existe por si só como uma espécie de entidade espiritual. Estava inaugurado o dilema cartesiano que separou a mente humana do corpo e inaugurou a filosofia moderna.

Falar em “reduzir” a mente à matéria ou “explicar” aquela em função desta é disfarçar o que é na verdade uma tentativa de eliminar da nossa concepção de mundo tudo que é essencial à mente e substituir isso por algo materialista-mecanicista. O secularismo não “explica” Deus, mas nega que Ele exista; o mecanicismo não “explica” as causas formais e finais, mas negam que existam. Sem Deus para resolver o “problema da interação” entre mente e corpo, tornou-se cada vez mais atraente tentar reduzir de algum modo a mente à matéria, de modo que o problema de explicar como elas entram em contato desapareceria.

Para os modernos, a mesma essência ou forma não pode existir na mente e na realidade ao mesmo tempo. A “representação mental” é uma coisa específica e seu objeto é outra coisa específica de um tipo inteiramente diferente, não havendo nenhuma forma ou natureza universal partilhada entre eles. Tudo o que chegamos a observar ou somos capazes de observar são os corpos das pessoas, não suas almas, não elas. Causas e efeitos se tornam, como na formulação de David Hume, “soltos e separados”, qualquer coisa sendo em princípio capaz de produzir qualquer outra coisa.

Esse ceticismo radical a respeito da capacidade da mente de conhecer o mundo exterior de fato se torna um sério problema teórico quando se dão por pressupostos as premissas padrões da filosofia moderna. Negar que existem causas formais ou finais no mundo natural é negar implicitamente que haja qualquer padrão objetivo de bondade nesse mundo. Se não há nenhum fim ou objetivo natural de uma coisa (inclusive pessoas e atos), então não há nada em referência ao que se possa julgar “certa” ou “errada”. Se todo valor é subjetivo, existe apenas em relação a quem faz a valoração. O bem se torna, assim, uma função das nossas preferências, desejos, sentimentos ou intuições subjetivos; e a razão serve “para” o que quer que desejemos que sirva.

Simplesmente não há mais nada que a razão ou o bem possam ser quando se segue a linha mecanicista. Como a causação, o livre-arbítrio, o conhecimento, o conceito de pessoa e a ideia de direitos humanos naturais (jusnaturalismo); a moralidade em geral se torna uma ilusão ou, na melhor das hipóteses, uma “projeção”, quando se desenvolvem de maneira coerente as implicações da revolução antiaristotélica dos modernos. Não é possível dar à moralidade fundamentação racional objetiva com base em premissas do ateísmo ou do naturalismo. Ateus ou naturalistas podem acreditar na moralidade – isto é um fato psicológico -, mas não podem ter justificação racional dessa crença – isto é um fato filosófico.

O resumo padrão do Iluminismo em uma frase é o seguinte: Como a religião é baseada na fé cega, os fundadores do pensamento ocidental moderno procuraram libertar a ciência e a filosofia da aceitação irracional dela, reduzir ou eliminar sua influência na vida pública e reorientar até a vida privada antes à melhoria deste mundo que à preparação para uma ilusória vida eterna. Isto é quase o exato oposto dos fatos!

Na verdade, os modernos não rejeitaram a religião por apoiar-se na fé cega; seria mais exato dizer que a acusaram falsamente de repousar na fé cega de modo que pudessem justificar a rejeição a ela, e fabricaram uma nova concepção do que deveria ser considerado “racional” com a esperança de que a acusação pegasse. O desejo de reorientar a vida humana para este mundo e reduzir a influência da religião levou os primeiros pensadores modernos a abandonar as categorias filosóficas tradicionais e redefinir o método científico de modo que a razão não pudesse mais fornecer à religião o apoio que sempre se entendeu que fornecia, pelo menos não de maneira robusta. Os modernos conseguiram insinuar que estas lentes são as únicas agora disponíveis, alegando que a ciência moderna “refutou” de algum modo a metafísica aristotélica, e fez com que era e é uma disputa entre cosmovisões metafísicas rivais parecesse em vez disso ser uma “guerra entre ciência e religião”.

“A ideia de propósito no mundo passou a ser desconsiderada e vista com reprovação. Esta, embora silenciosa e quase despercebida, foi a maior revolução da história humana, ultrapassando de longe em importância todas as revoluções políticas cujo estrondo reverberou pelo mundo. Não há nada no mundo, de acordo com esse novo quadro, nem propósito nem razão nem sentido. A natureza não é nada além de matéria em movimento. Os movimentos da matéria não são regidos por propósito nenhum, mas por forças e leis cegas. Mas se o esquema das coisas não tem propósito nem sentido, então a vida humana também não tem propósito nem sentido. (…) Daí o espírito insatisfeito e desiludido do homem moderno.”(W.T. Stace)  

Ao que tudo indica, deu-se mesmo uma “queda” de enormes proporções entre os séculos XIV e XV. Por certo, essa é a metamorfose cultural que normalmente contemplamos sob as cores da evolução e do progresso; apenas, passou-nos despercebido que na barganha perdemos o nosso senso de transcendência.

 Foto: A Última Ceia / UniversalImagesGroup via GettyImages

Autor

Alexandre Castanheira

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