Dificilmente algum brasileiro não passou, em algum momento da década passada, pelo incômodo de ter que lidar com uma então premente necessidade social: posicionar-se acerca dos recém proclamados Conservadores no espectro político cultural da hora. Não é todo dia que um assunto sai dos livros de História e entra no mundo real! E isto aconteceu porque era senso comum no mundo acadêmico que tratava-se de uma ideologia política que teria ficado perdida no tempo.
Isto posto, quando fenômenos sociais de reação ao que se supunha inevitável direcionamento político rumo ao Globalismo, eclodiu na Inglaterra, nos Estados Unidos e mais surpreendentemente ainda, no Brasil, um fosso gigantesco ficou escancarado entre a perspectiva da realidade política trazida para a sociedade pela Academia/Mídia e o fenômeno em si mesmo.
Numa ousada tentativa de trespassar esse fosso, trarei aqui uma abordagem sobre o Conservadorismo amparada na filosofia de Michael Oakeshott, um britânico tipicamente catedrático que transitou entre Cambridge e Oxford durante toda sua vida no século XX e, após, apresentarei minha crítica fundamentada numa visão filosófica escolástica sobre os problemas que a linguagem acadêmica atual acaba gerando para conceituar as cosmovisões políticas em voga na sociedade.
E a escolha de Oakeshott como paradigma acadêmico a ser aqui esmiuçado tem outra razão; ele é um dos principais influenciadores do filósofo brasileiro Luiz Felipe Pondé, o que facilita bastante para o leitor brasileiro “posicionar” o britânico no contexto político cultural. Enfim, não à toa Pondé foi responsável pelo prefácio da última obra do referido autor traduzida no Brasil, A política da fé e a política do ceticismo.
O livro em questão propõe identificar a ambiguidade entre fé e ceticismo presente na ideia de governo e política no mundo moderno e contemporâneo (últimos 500 anos), sendo que fé aqui nada tem a ver com fé como fenômeno religioso. Fé, aqui, significa fé na racionalidade aplicada à política de modo sistemático; uma notável e inebriante valorização do poder humano que surgiu no início da história moderna, que estimulou a esperança da salvação por meio da política e a promessa de prosperidade, abundância e bem-estar. A política da fé corresponde, em resumo, àquela disposição moderna que Oakeshott chamou de “racionalismo na política” ou “estilo ideológico da política”.
Na política da fé, a atividade de governar está a serviço da perfeição da humanidade, sendo essa perfeição humana buscada justamente porque não está presente. Aqueles que abraçam esse estilo enxergam os homens como criaturas de suas circunstâncias, de modo que sua perfeição é identificada como uma condição dessas circunstâncias. No fundo, é justamente essa identificação, a qual permite que se busque tudo aquilo que o homem possa vir a desejar, que torna esse estilo de política distinto de qualquer outro. Acredita-se que o governo seja o principal agente do aprimoramento que resultará na perfeição. A função do governo, portanto, é entendida como o controle e a organização da atividade humana com o propósito de alcançar sua perfeição.
Como resultado, nessa compreensão da política as instituições de governo são interpretadas não como meios para fazer as coisas, ou para permitir decisões de qualquer ordem, mas como meios para se chegar à “verdade”, ou para excluir o “erro” e fazer a “verdade” prevalecer. A política da fé compreende o governo como uma atividade “ilimitada”; o governo é onicompetente. A crença de que existe uma maneira particular de estabelecer a autoridade e construir um governo que gerará, infalivelmente, uma única forma de exercer o poder do governo é uma ilusão própria da política da fé.
Com efeito, desde o século XIV (Guerra dos 100 anos), governos de toda a Europa estavam adquirindo em vários níveis o poder de controlar as atividades e destinos de seus súditos de uma forma como seus antecessores nunca haviam feito. O processo de centralização dos poderes governamentais, até então difusos, tem sido reconhecido (mas nem sempre interpretado corretamente) como uma das mais importantes modificações da vida e do pensamento medievais que contribuíram para o surgimento da Europa moderna. O que caracterizava o governo medieval não era somente seu poder relativamente pequeno, mas também uma noção adaptável da atividade de governar.
Já o ceticismo em questão acha a experiência humana tão variada e complexa que nenhum plano para ordenar e reconstruir as atividades humanas poderia ter sucesso. Tais planos, na melhor das hipóteses, produzem alegria temporária e realizações fugazes, e nas piores oprimem as pessoas e deprimem o espírito humano. O alcance da experiência humana e a interminável alteração das relações entre indivíduos e grupos sempre superam todos os esforços para coloca-los sob o controle de um planejamento central. Dar mais poder ao governo significa estimular a aspiração equivocada de incrementar tal controle para, coletivamente, “buscar a perfeição em uma única linha de ação”. Isso ameaça o compromisso dos indivíduos de obter o autoentendimento por si mesmos e de explorar as imensas oportunidades para aqueles que insistem em responder ao mundo conforme o significado que lhe dão, indivíduos que se veem livres porque sabem “o que são para si mesmos”. O governo deve ser utilizado de forma que apenas sua ausência seja notada, a desconfiança do cético é imediatamente despertada pela atividade intrusiva!
Importa muito compreender que a política do ceticismo somente como a oposição à política da fé leva a uma imprecisão. O ceticismo não surgiu apenas como uma reação à fé; surgiu, no mundo moderno, como uma herança da forma medieval de compreender a atividade e o funcionamento do governo. Seu primeiro triunfo foi distinguir política de religião (distinção implícita no Cristianismo desde seus primórdios), e, outras conquistas, embora menos espetaculares em seu vigor (no papel) que os da fé, geralmente eram mais sólidas e inventivas. Duas das três grandes
revoluções dos tempos modernos começaram no estilo do ceticismo; e, enquanto a primeira formulou a constituição mais profundamente cética do mundo moderno, a Constituição dos Estados Unidos da América, a segunda, a Revolução Francesa, logo foi desviada para o caminho da fé. Apenas a Revolução Russa não deveu nada à política do ceticismo. (Cultura Revolucionária)
Dado todo este contexto cultural por onde floresceu o vocabulário político na Europa nos últimos quinhentos anos, podemos aferir hoje, em 2022, que os governos se dedicam a uma dupla tarefa: primeiro, subjugar a sociedade; em segundo lugar, manter sua submissão a uma única direção de atividade. Portanto, é cristalino que a linguagem da política da fé prevaleceu quase unissonamente durante o século XX. Não resta dúvida que trata-se de uma cosmovisão política muito mais apropriada para a implementação de grandes projetos de poder. Então chegamos no paradoxo desse presente artigo: seriam movimentos céticos ou conservadores os recentes fenômenos sociais de reação à política progressista/globalista? A resposta é tão ambígua quanto a
própria linguagem filosófica que lhe dá causa.
Ocorre que a filosofia moderna desenvolveu sua linguagem dentro de uma cosmovisão humanista, onde a religião, sem deixar de ter que ver com as questões morais, passou a ser considerada apenas mais uma variável dentro do todo complexo da cultura, mais ou menos no mesmo plano de horizontalidade que a língua, a nacionalidade, a ideologia política e até a filiação étnica.
Sem a verticalidade presente no simbolismo cristão que unia a alma individual à universalidade do espírito divino, as ideologias políticas tenderam a ocupar totalitariamente o cenário inteiro da vida espiritual, achatando a totalidade da metafísica e a unidade do indivíduo humano no molde de uma cosmovisão unidimensional.
Em contrapartida a essa prevalência de toda uma cultura acadêmica voltada exclusivamente para o homem, este Projeto Raiz Ocidental comunga com a interpretação filosófica proposta pelo intelectual Flávio Morgenstern no artigo “O Sagrado e o Profano” publicado no site sensoincomum.org em 02/09/2020; na qual a verdadeira distinção entre as visões de mundo não deve ser entre conservador, liberal ou socialista; ou mesmo entre direita e esquerda. A verdadeira disputa é entre visões de mundo seculares e transcendentes:
“Nota-se com toda facilidade como os seculares, tratando tudo como matéria, estão apenas numa (comparativamente) pequena discordância sobre alocação e distribuição de recursos (basicamente de forma monopolista ou entre entes privados), enquanto visões de mundo transcendentes estão, cada uma a seu modo, dando significados distintos a fenômenos com peso moral absurdamente divergentes, a despeito de serem realizados por Estado ou mercado.
É facílimo perceber como liberais e comunistas tratam bens como pura matéria, tendo divergências sobre “liberdade” muito mais no sentido de distribuição material do que em qualquer outra questão sobre livre arbítrio.
Qualquer visão transcendente está buscando sentidos nas relações humanas, nos comportamentos, na moral, mesmo no comércio ou nas propagandas.
A forma como são traçados os laços humanos – da família e amizade ao comércio e às relações internacionais – é avalizada por significados mais profundos (históricos, culturais, tradicionais, religiosos etc – que perduram e determinam muito mais a ação humana do que uma variação da Bolsa ou uma disputa entre um burocrata e um agente de mercado (como se ambos não estivessem, via de regra, mancomunados, ou não fossem o mesmo agente).(…)
Tanto o liberal quanto o marxista são seres da modernidade, são frutos de um mundo já destruído, anômalo e manco, com uma eterna nostalgia por algo maior que se perdeu.”
Se a imagem corrente no “mundo intelectual” de que todo conservador é, por natureza, uma espécie de reacionário, um sujeito retrógrado e moralista, defensor da permanência de certos arranjos e costumes de uma forma intransigente e impassível perante qualquer vicissitude do tempo; isto certamente é uma visão caricata forjada artificialmente pelos criadores da sociedade secular moderna há pelo menos quinhentos anos, através, principalmente, da introdução de uma linguagem filosófica categorizada em um mundo unidimensional mecânico e sem uma inteligência suprema. (Ciência e Filosofia)
Se, de fato para Oakeshott e o senso comum: “ser conservador é, pois, preferir o familiar ao desconhecido, preferir o tentado ao não tentado, o fato ao mistério, o atual ao possível, o limitado ao abundante, o próximo ao distante, o suficiente ao superabundante, o conveniente ao perfeito, o riso presente à felicidade utópica.”; para melhor compreender o homem espiritual cristão que crê na relação entre a esfera material e a imaterial da realidade, o uno e o múltiplo, a mudança e a permanência e a função correta tanto nos sentidos como do intelecto no conhecimento de tudo isso, precisamos deixar de lado a linguagem acadêmica moderna e revisitar a tradição filosófica na qual foi possível construir uma síntese intelectual edificada de uma estrutura de pensamento em que cada aspecto do conhecimento é coordenado e subordinado à teologia, ou seja, o destino final de cada inteligência criada. (Ateísmo Cultural)
É inevitável que seja preciso, em política, tratar com noções cuja categoria as aproxima mais da metafísica que da própria filosofia prática. Desse modo, faz-se necessário um aprimoramento da abordagem linguística que se dá hoje dentro do movimento político dito conservador, no intuito de submeter seus pressupostos filosóficos ao seu verdadeiro criador: a doutrina católica patrística e escolástica.
E essa luz não virá nem da Academia nem da Igreja.
Respostas de 3
Tudo muito desvirtuado: o conservadorismo e a igreja! Que mais intelectuais tragam luz sobre esse tema, como tão bem vc o faz! Parabéns!
Só aplausos para você, Alexandre! A sua dedicação ao ensinamento é digna de reconhecimento. Atualmente, com carência de respostas, coloco Deus acima de tudo e “deixo a vida me levar”.
Espetacular !