Revolução Francesa Destaque
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Cultura revolucionária

Chegamos ao século XVIII, com os olhos ainda voltados para França, então a capital cultural do Ocidente. Iniciei este projeto com firme propósito de inculcar nos leitores uma abordagem histórica diferente daquela ensinada nas escolas contemporâneas, na qual essa ciência humana é imposta univocamente num viés materialista, seguindo a cosmovisão hegeliana (espécie de escatologia moderna essencial para a formação da ideologia marxista no século XIX). Nessa perspectiva de mundo, praticamente se reduz todos os aspectos das ações e/ou relações humanas através da História numa predeterminada, inevitável e linear passagem das sociedades de um estágio teológico para o estágio científico (Cultura, Religião e Progresso).

Ocupei-me, portanto, no intuito de preencher essa imperdoável lacuna intelectual vigente nos dias atuais, em elucidar a cronologia do saber filosófico transcendente da Grécia Antiga ao início da Modernidade (Ateísmo Cultural), e à construção da nova mentalidade ocidental voltada ao domínio da natureza a partir do Renascimento (Ciência e Filosofia). Deste modo, podemos extrair algumas premissas sobre a situação cultural europeia em meados dos anos mil e setecentos:

a) O auge da Idade Média que se dera no século XIII já estava um tanto longínquo, quinhentos anos passados da emergência das Universidades e consequente consolidação da filosofia escolástica (Mal Estar na Civilização e o Renascimento);

b) Duzentos anos da revolução Copernicana que mudara o eixo cosmológico geocêntrico para o heliocêntrico;

c) Cem anos das bases filosóficas da sociedade científica de Francis Bacon na Inglaterra e René Descartes em França.

Ressalte-se que nem enumerei em destaque a Reforma Protestante do século XVI, a qual provocou um gigantesco cisma na Cristandade europeia, uma vez que o foco deste ensaio é o caldo cultural antirreligioso que emergia nos salões de Paris nas décadas que precederam a Revolução Francesa. As sociétés de pensée foram assim descritas pelo historiador Augustin Cochin que viveu no período:

“É no declínio do Reino de Luís XV que o fenômeno se difunde na França. O Grande Ocidente se constitui em 1773. As sociedades secretas e ordens diversas. Escoceses. Iluminados. Sweden-borgeanos, Martinistas, Egípcios, Amigos Reunidos disputam adeptos e correspondentes. Vê-se, enfim, de 1769 a 1780 saírem da terra centenas de pequenas sociedades semidescobertas, autônomas em princípio, com as lojas, mas agindo em comum, como também as lojas, constituídas à semelhança delas e animadas pelo mesmo espírito “patriota” e “filosófico”, que escondia mil objetivos políticos semelhantes sob pretexto oficial de ciência, beneficência ou divertimento (…) O reino dos salões da maledicência espirituosa e elegante passou. Começa agora o das sociedades do livre pensamento.”

Pois foi nessas Sociedades de pensamento onde nasceu o Iluminismo! Nunca talvez a corrente geral das ideias, da literatura, esteve tão afastada das realidades, do contato com as coisas, como nesse fim de século. Esta nova forma de “livre pensar” visava derrubar estes entraves ao novo conceito de liberdade: a experiência, a tradição e a Fé.

E então o mundo inteiro (com algumas honrosas exceções) pensou que os franceses acabavam de descobrir a liberdade, a igualdade e sobretudo a fraternidade. Acelerou-se o processo das decapitações, sempre em nome desses novos conceitos, até que, enjoados de tanto sangue, os bons burgueses sentiram a nostalgia do Rei, e numa espécie de ultracorreção histórica, aclamaram lʼEmpereur, que aliás não esperou por povo nem papa e coroou-se a si mesmo, ao espelho.

Terminado este indispensável introito, cumpre-nos refletir demasiadamente no quão bem sucedido foi este empreendimento revolucionário, ao mesmo tempo caótico, porém, com claro objetivo de fabricar um novo homem e uma nova sociedade governada por um Estado Deus, o qual supriria todas as necessidades dos seus concidadãos.

Foram tantos símbolos sacralizados pela nova religião terrena que precisaríamos de uma coletânea de livros, artigos e ensaios para dar conta de tantas receitas prontas para moldar o intelecto das gerações que estavam por vir. A partir deste iluminado momento histórico, quem poderia questionar o esplendor da República Democrática moderna? Aquela que trará todas as respostas para todas as demandas do homem.

Seria importante para os iluminados de ocasião que não revisitássemos a História grega, pois foi a deusa Democracia, ela mesma, a assassinar Sócrates, o pai da verdadeira filosofia ocidental. Não é difícil apreender dos imortais diálogos, que há dois mil e quatrocentos anos convieram que não existe um modelo político perfeito e universal. Todas as formas de governo tenderiam a degradação, e a democracia era vista como uma forma agradável de anarquia, podendo facilmente se degenerar numa tirania demagógica. Quanto ao tratado de Política de Aristóteles, Ética a Nicômaco ocupa um lugar fundamental na base do pensamento humano, onde os conceitos de virtude e justiça passaram a nortear todas as grandes civilizações que sucederam os helênicos.

Ainda na Grécia; Sócrates, com seu conceito de domínio interior do homem por si mesmo, esboçou a teoria da liberdade como uma questão de interioridade moral. No pensamento platônico, a liberdade era uma liberdade interior que se alcançava mediante renúncia e despojamento. A perspectiva aristotélica não abandonou em nenhum momento sua vinculação à tradição socrático-platônica quanto à interioridade da liberdade, e nunca este termo foi empregado em referência a uma suposta faculdade jurídica.

A liberdade interior é, na tradição socrática, a condição sine qua non das decisões que conformarão por sua vez as ações boas e justas, objeto da política. Ela não é nunca uma meta política! A liberdade, no vocábulo técnico da filosofia, é um conceito afim ao de potência; a liberdade é sempre liberdade de algo e não liberdade pura, em si. Algo similar sucede com o próprio conceito político de poder. Fenômeno idêntico acontece com inúmeros outros termos usados no raciocínio científico, como por exemplo “igualdade”, “diferença”, “causa”, etc. Com efeito, nenhuma ciência pode definir esses termos e também não o pode, a metodologia científica, se tomar como pressuposto a validade do conhecimento científico, em vez de fundamentá-lo desde suas raízes. Podemos, é claro, fixar significados lógico-formais para essas palavras, bem como para muitas outras, mas somente como um recorte convencional operado em cima daquilo que elas significam na experiência concreta humana.

De fato, o que aconteceu há cerca de duzentos anos nos salões das sociedades secretas foi, antes de tudo, uma revolução da linguagem. Todos aqueles termos acima citados, que só faziam sentido dentro da experiência humana na realidade, agora passaram a ter sentido apriorístico, ou seja, que independe da experiência ou da prática. Também como consequência, as potências do ser humano que só aparecem quando ele é confrontado com a dimensão da infinitude e da eternidade, tornaram-se então inacessíveis, e passaram a ser explicadas ou tratadas como crenças culturais de épocas extintas, com a conotação de atraso e barbarismo. Daí, também, que as mais hediondas realizações da sociedade tecnológica, como a guerra total e o genocídio, tenham de ser explicadas, de maneira invertida e totalmente irracional, como resíduos de épocas incivilizadas em vez de criações originais e típicas da nova cultura.

Estava colocado enfim, o novo modelo para um mundo perfeito, sem reis,príncipes, sacerdotes e moralidade cristã. A verdadeira ciência havia expulsado a superstição da cultura e agora a fé seguiria como uma atividade marginal secundária para cidadãos de segunda classe. A religião do Novo Mundo seria maçônica. Deste momento em diante, ninguém faria carreira política nas três Américas sem ter que entrar para a Maçonaria, prestar satisfações à Maçonaria ou enfrentar a Maçonaria.

É totalmente falso o pressuposto, aceito pelos teóricos há dois séculos, de que a modernidade se caracteriza pela ampliação dos meios de participação do povo no poder e pela eliminação progressiva do resíduo aristocrático. Ao contrário, tanto na Revolução Francesa quanto no nascimento do Império Americano, o que se observa é a ascensão de uma aristocracia iniciática, cujo poder, fortalecido pela disciplina do segredo, se furta por completo a toda fiscalização, a toda crítica, a toda tentativa de controle externo.

Está aí o melhor dos mundos para a nova classe emergente, um simulacro de democracia para consumo das massas e uma aristocracia de fato comandando as ações. Também foi nesta época, naqueles salões de Paris onde as sociedades secretas cunharam os conceitos sagrados das repúblicas democráticas liberais, que também foi criada uma nova maneira de divisão social, o jogo esquerda – direita.

A origem desse binômio, como ninguém ignora, foi a divisão das poltronas no parlamento francês. Os termos que definiam bancadas e índoles partidárias subiram para o céu das essências e passaram a designar certos arquétipos ou abstrações. O dualismo do esquema já nos induz a procurar sua colocação no plano ético, ou mesmo no plano da cosmovisão, ou da ideologia, onde os termos esquerda e direita poderão significar tipos de personalidades marcadas por parâmetros morais e por concepções intelectuais.

O sucesso da referida metáfora, a violência de sua aplicação e sobretudo a sua capacidade de confundir, mentir e falsear se explicam pelo humanismo antropocêntrico, ou por todo um processo civilizacional aberrantemente afastado de Deus e gerador de inimizades. O símbolo da antítese esquerda-direita está no secreto desejo de rasgar o homem. O século disputa a hegemonia da nova civilização e disputa com a Igreja a posse do filho, preferindo-o rasgado em dois como a falsa mãe desvendada pelo rei sábio.

Ao introduzir o encerramento deste quase apólogo, rogo aos interessados refletir sobre o que resta evidente, límpido e claro. O grande empreendimento cultural culminado na Revolução Francesa teve por objetivo essencial apagar do imaginário da sociedade europeia e posteriormente nas Américas, toda tradição socrática guardada e revigorada pelas filosofias católicas por mais de um milênio nos monastérios em toda Europa. O novo homem que emergirá da Revolução será devoto do Estado, o qual garantirá a liberdade que o pobre nunca tivera até então. O esforço do novo Deus será a promoção da igualdade para que haja finalmente justiça no mundo! As Repúblicas modernas terão suas respectivas Constituições fundadas nestes novos conceitos, em tese nunca antes pensados muito menos vividos em nenhum momento da História tirânica dirigida pelas religiões transcendentes desde a Antiguidade. Este seria o mote a partir de então, muita propaganda política sob falsas premissas. Mirem nas novas técnicas e esqueçam do passado sombrio da humanidade. Pobres homens.

Por fim, faço uma ponte para o final do século XX, quando fui educado em escola católica dos meus dez aos dezessete anos, época em que geralmente formamos a ordenação do nosso imaginário pela leitura. No meu caso, aluno dos Irmãos Maristas, consigo memoriar o livro didático no qual estudei a História Moderna, e não havia margem alguma para reflexões mais ou menos profundas sobre o período. A Revolução Francesa fora o ápice do iluminismo racionalista, quando foi deixada para trás a era da mitologia, ignorância e obscurantismo representados pela parceria Monarquia-Igreja.

Meu Deus do Céu! Toda essa mentira, e não há outro nome para isso, foi-me imposto goela abaixo dentro de uma instituição Católica. Cabe-me confessar o sentimento de traição que me veio após descobrir a muito custo e já com cabelos brancos, que os principais educadores, responsáveis pela formação do imaginário e consequentemente da consciência moral dos homens e mulheres que lideram as nações ocidentais fundadas sob a cruz do Cristo, na verdade, obscurecem o espírito, ao invés de iluminá-lo e desacreditam a alma, ao invés de preenchê-la. Nada mais absurdo. Nada mais vergonhoso. Nada mais… revolucionário! E os Maristas não são exceção. Os considerados melhores colégios de Belo Horizonte na minha adolescência, Santo Antônio e Santo Inácio de Loyola, nessa ordem, são católicos e ao mesmo tempo fábricas de ateus. Mas, neste contexto, tem como ser diferente?

A grande questão que se impõe é quando acabará esse processo destrutivo; de fabricação de ideologias, de inimizades, de separação das pessoas. Em 2021, a Revolução Mundial segue seu rumo alavancada pela pandemia, cada dia mais brutal, insultando, rotulando e separando os homens. Liberdade? Igualdade? Fraternidade? Ah sim, direitos para todos. Esta iluminação cultural foi mesmo um sucesso.

Foto: © Hulton Archive via Getty Images. Direitos controlados.

Autor

Alexandre Castanheira

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Respostas de 22

  1. E como que eu mostro isso pro meu irmão prestando vestibular? Essa realidade patente e latente só chega em quem a busca. A jornada do herói nunca foi metáfora tão forte para o estudioso que consegue e tem a força de vontade de ler mais de três parágrafos do seu belíssimo texto. Só aprende quem quer aprender. Eu nunca vou conseguir fazer meu irmão ler algo do tipo. Como que a gente põe esse texto dentro dos colégios católicos?

  2. Continuo aprendendo com você.
    Muita pesquisa e muito empenho para dar o seu
    recado, não é mesmo? Gosto da forma como escreve e do jeito preciso de alinhavar fatos e idéias para concluir as várias questões que levanta – e que
    realmente importam.
    Parabéns, Alexandre!
    Tomando como mote a sua confessada decepção com o segundo grau, me assumo preocupadíssima com o ensino de hoje. Que valores os nossos jovens estão absorvendo nas “boas” escolas? – me questiono.
    E quando a mídia trata de educação é só para falar em igualdade de gênero, em bullying, em opção por sexo a, b ou c, e coisas semelhantes.
    Filosofia? Espiritualidade? Textos como os seus? – nem se cogita. O que, realmente, me deixa pouco esperançosa.
    Quanto a você, Alexandre, continue sendo luz e farol em nosso tempo e espaço.

  3. Alexandre , uma maravilha de texto como esse , somente vindo de você . Com muita dedicação junto aos livros , muitas pesquisas e buscando sempre a cultura .

  4. Excelente texto, muito bem escrito que expõe as trevas do ensino brasileiro sobre a “idade das trevas”. Assim como com você, essa parte da história foi-me ensinada de forma porca e totalmente superficial. Há uma gigantesca lacuna no que aprendi na escola sobre história nesse período. Há alguns pontos que eu gostaria de trocar umas ideias com você, mas isso faremos pessoalmente. Assim como comentaram acima, esse texto deveria ser lido e discutido dentro das escolas. Parabéns e continue produzindo.

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